27 de fevereiro de 2009

A MISSÃO DA IGREJA


Em 1876, quando ministrava a palavra inicial numa convenção regional em Taranto (Itália), o bispo católico Don Caprício disse que “a missio Dei pela sua supremacia bíblica dispensa a missão da Igreja. Somos apenas contempladores das maravilhas que Deus faz”.[1] Com certeza, essa concepção de missio Dei está totalmente equivocada quanto à participação da Igreja na missão de Deus. Realmente a “missão” é do Deus Triúno, e que a Igreja não tem missão própria. Contudo, isso não quer dizer que ela não tenha uma tarefa a cumprir com relação a essa missão. Num sentido restrito, a missão é só de Deus, mas por sua graça e propósito, a Igreja tem o privilégio de participar.

Embora forte ênfase sobre a Grande Comissão recaia sobre os Evangelhos sinóticos (Mt 28.18-20; Mc 16.15-18; Lc 24.44-49), o Quarto Evangelho possui em sua essência um propósito missionário (Jo 20.31), bem como uma comissão da parte do Senhor Jesus: “Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio” (Jo 20.21). Estas palavras foram ditas pouco antes de sua ascensão e são o fundamento básico para o envolvimento missionário da Igreja no Evangelho de João. Referindo-se a este verso, John Stott observa que a missão da Igreja encontra articulação precisa no Quarto Evangelho:

A forma crucial em que a Grande Comissão tem sido legada a nós (apesar de que ela é a mais negligenciada porque é a mais custosa) é a Joanina. Jesus tinha antecipado-a em sua oração no cenáculo na qual tinha dito ao Pai: “Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo” (Jo 17.18). Agora, provavelmente no mesmo cenáculo, mas após sua morte e ressurreição, ele tornou a sua oração-declaração em comissão e disse: “Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio” (Jo 20.21). Em ambas essas declarações Jesus fez mais do que descrever um paralelo vago entre a sua missão e a nossa. Deliberadamente e precisamente, ele fez de sua missão o modelo da nossa, dizendo: “Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio”. Desse modo, nossa compreensão da missão da Igreja deve ser deduzida de nossa compreensão da missão do Filho.[2]

A missão da Igreja é fundamental na missão do Filho e “nada menos que a missão de Jesus para o mundo serve de modelo para a missão da Igreja”.[3] O apostolado da Igreja é identificado com o apostolado do Filho e dele depende. Pois fora dessa missio Dei, por meio de Jesus, não existiriam mais envios hoje. “Tudo o que acontece em termos de envio desde Sua missio partiu dele, está determinado por Ele, encerrado em Seu envio, é continuação de Seu envio por Ele mesmo”.[4] Por isso, é possível e correto dizer que a missão da Igreja é a continuação da missão de Jesus. Erdmann, falando sobre a missão em João, nomeia um de seus subtítulos de The Continuation of Mission: the Sending of the Disciples (A Continuação da Missão: o Envio dos Discípulos).[5]

Antes de analisarmos melhor a Comissão de Jesus em João 20.21-22, é preciso fazer algumas observações e comentar outros textos que também falam do envio dos discípulos. A primeira consideração é a respeito da palavra Igreja. Reconhecemos que ela não aparece no Evangelho de João, nem nas suas duas primeiras Epístolas; somente na terceira e em Apocalipse (III Jo 1.6, 9, 10; Ap 2.1; 8, 12, 18; 3.1, 7, 14). No entanto, embora a palavra não apareça no Evangelho, o seu conceito está presente. Em segundo lugar, é preciso fazer diferenciação entre a Igreja e a “missão”. Nem tudo que a Igreja faz é missão (por exemplo, o culto). De acordo com Stott, “dizer que ‘a igreja é missão’ soa bem, mas não passa de exagero”.[6] Também não podemos dizer que “missão” é tudo que Deus faz no mundo, pois, independente da atividade da Igreja, Deus age no mundo através da sua providência e graça comum.

Quanto aos outros textos que falam do envio dos discípulos por Jesus, além de João 20.21, existem mais três declarações em relação ao envio deles ao mundo (4.34, 38; 13.16, 20; 17.18). Depois da conversa de Jesus com a mulher samaritana, ele envia seus discípulos para a ceifa (4.35-38). O objetivo dessa missão é “entesourar seu fruto para a vida eterna” (4.36), ou seja, eles deveriam levar outras pessoas a Cristo, como aquele que confere vida eterna. A seriedade de receber os desafios dessa tarefa absorvente é impulsionada pela consciência do iminente julgamento que virá sobre o mundo (5.22, 27-30). Na sua segunda vinda, o Senhor Jesus dará seu veredito imparcial sobre a vida de todos os seres humanos, e o destino eterno deles estará baseado no fato de eles terem crido ou não no Evangelho (3.16-18).[7]

Em João 13.16-20, Jesus diz que “o servo não é maior do que seu senhor, nem o enviado, maior do que aquele que o enviou” (v. 16). O “enviado” aqui se refere aos discípulos. E se Jesus, que é o Senhor, lavou os pés deles, demonstra que ele não se tornou menos digno. Logo, eles deveriam fazer o mesmo. Nessa tarefa oficial em que os discípulos foram divinamente comissionados, a humildade deve ser algo próprio do exercício de sua função. Se a humildade é uma atitude própria para o Senhor e enviador, assim também deveria ser para os servos e comissionados. Por meio de Cristo, eles deveriam exercitar-se nesta graça e crescer nela, pois é bênção para quem a pratica (v.17). No verso 20, Jesus diz: “quem recebe aquele que eu enviar, a mim me recebe; e quem me recebe, recebe aquele que me enviou”. Novamente Jesus se identifica como enviador e enviado, estabelecendo uma relação com os discípulos como enviados dele. Os discípulos representariam a Cristo, assim como ele representou o Pai. E se alguém rejeita a mensagem dos apóstolos, está rejeitando automaticamente, tanto o Filho como o Pai. Essa correlação é inseparável. Por isso “aplica-se a todos os tempos e para cada verdadeiro embaixador de Cristo (i.e., para cada embaixador que verdadeiramente o representa e verdadeiramente proclama sua Palavra)”.[8]

Na oração final de Jesus, ele não roga ao Pai para que seus discípulos fossem tirados do mundo, mas para que fossem livrados do mal (17.15). Jesus também intercedeu para que fossem santificados pela Palavra de Deus (17.17). Assegurado da resposta do Pai, ele continua: “Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo. E a favor deles eu me santifico a mim mesmo, para que eles também sejam santificados na verdade” (17.18-19). A santificação dos discípulos é para que eles possam ser enviados, assim como ele havia sido antes. Nessa mesma oração, Jesus também roga para que os discípulos vivam em unidade, pois a unidade servirá como testemunho ao mundo da verdade referente a Jesus (17.21-23). Em João 13.34-35, Jesus diz que o amor dos discípulos uns pelos outros levaria o mundo a reconhecer que eles eram verdadeiramente seus seguidores. Feitas essas considerações preliminares, vamos ao envio da Igreja na Comissão do Cristo pós-ressurreto.

5.1. O Envio da Igreja
“Assim como o Pai me enviou (apestalken), eu também vos envio (pempo)” (Jo 20.21). Aqui, como em outros lugares, João usa os verbos intercambiavelmente com o mesmo sentido. Como foi dito antes, no capítulo 3, o envio dos discípulos por Jesus é descrito tanto por apostello (4.38; 17.18) como por pempo (13.16, 20; 20.21). Entende-se que não existe uma variação de significados. As duas palavras possuem a mesma conotação no Evangelho de João. Referem-se ao ato de alguém que envia outro a um remetente, levando consigo a autoridade daquele que o enviou. Esse fato é bastante importante aqui, porque capacita a Igreja com a autoridade de Cristo. É a verdade que Cristo trouxe, viveu e revelou que a Igreja proclama ao mundo. Analisando esse aspecto em João 20.21, C. K. Barrett diz:

"O envio de Jesus por Deus significou que nas palavras, obras e pessoa de Jesus, os homens verdadeiramente se confrontam não meramente com um judeu, mas sim com o próprio Deus... A isto segue que na missão apostólica da Igreja, o mundo verdadeiramente se confronta não meramente com uma instituição humana, mas sim com Jesus, o Filho de Deus". [9]

Essa apostolicidade da Igreja através do envio do Filho (e do Pai e, por inferência, do Espírito), deve gerar em nós uma consciência muito profunda do papel que temos a cumprir como transmissores da mensagem salvífica. A Igreja não pode esquecer ou deixar de priorizar essa tarefa que Deus lhe confiou. “O tornar-nos instrumentos do Pai para levar a Sua salvação a todo o mundo e a consciência que temos disso devem gerar em nós, como indivíduos e comunidade, uma intensa e constante compulsão missionária”.[10] A participação da Igreja na missão de Deus faz parte de sua própria natureza, como instituição criada pelo próprio Deus. Se a Igreja não está envolvida na missão de Cristo ao mundo, não há envolvimento com ele e nele. Como foi citado no primeiro capítulo: “não cabe à Igreja decidir se ela quer fazer missão, mas ela só pode decidir se quer ser Igreja”.[11]

Desse modo, a Igreja como instrumento do Pai na consecução dos seus propósitos de salvação a um mundo que o rejeita, tem paralelo ou fatores de identificação com a própria missão do Filho. Até agora foram apresentados pelo menos três desses aspectos. Primeiro, a Igreja assume a missão do Filho, ou seja, através dela o Pai dá continuidade a sua missio. A Igreja deve levar a mensagem confrontadora do Evangelho ao mundo, mas essa missão é derivada e dependente da missão de Cristo. No entanto, a Igreja como apóstola de Cristo, não continua a obra dele em um caráter redentor, isto é, a sua missão não assume o aspecto soteriológico. Segundo, assim como o Filho não veio fazer a sua própria vontade, nem trouxe uma mensagem que não fosse a de seu Pai, ou seja, o modelo de sua missão estava centrado naquilo que o Pai lhe outorgou, do mesmo modo a Igreja não tem modelo missionário próprio. O seu modelo é a encarnação. A Igreja tem a seguir o mesmo padrão que o Pai usou ao enviar o Filho. Jesus é o seu modelo missionário. Terceiro, uma vez que o enviado identifica-se com o enviador, a Igreja, quando realiza a missão, está representando o Senhor Jesus. Ela age fundamentada na autoridade que o Filho possui no céu e na terra (cf. Mt 28.18-19).[12] Como diz Stott, “a missão da Igreja brota da autoridade universal de Cristo”.[13] Resta ainda tratar de mais dois aspectos da instrumentalidade da Igreja na missão: sua relação com o mundo e seu serviço.

5.2. O Caráter da Missão da Igreja
“Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio” (Jo 20.21). Se realmente a Igreja quer cumprir a missão que lhe foi outorgada, é preciso olhar para Cristo e ver nele o que compete fazer. E com base em Cristo como modelo missionário, cabe desenvolver aqui pelo menos mais dois aspectos essenciais para a realização dessa obra que compete à Igreja. Pois existe uma analogia entre o envio do Filho como Mediador e o envio dos apóstolos: “A autoridade comissionante é a mesma; a mensagem é a mesma (todavia, existe esta diferença: Jesus através de sua expiação faz a mensagem possível; os apóstolos simplesmente a proclamam!); e os homens a quem é proclamada são os mesmos. Portanto, o ‘assim... como’”.[14] É nesta perspectiva e paralelo que dois aspectos da proclamação da mensagem serão tratados: a quem e como. Jesus envia a Igreja ao mundo com uma mensagem, para servir.

a) Jesus envia sua Igreja ao mundo
“Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo” (17.18; cf. 20.21). Nesta oração que Jesus fez ao Pai, ele diz que sua missão foi direcionada ao mundo, de modo que a missão da Igreja tem a mesma direção e propósito. O significado da palavra mundo foi visto quando da análise feita do amor do Pai em João 3.16. Em síntese, e tomando os conceitos esboçados por René Padilla, pode-se conceituar mundo em três sentidos básicos: (1) O universo criado; (2) A ordem presente da existência humana [tempo-espaço]; e (3) A humanidade em franca inimizade contra Deus e servil aos poderes das trevas. [15]

O sentido em que o mundo é reclamado pelo Evangelho, é este último, ou seja, o mundo rebelde e hostil a Deus. Desse modo, a palavra mundo no Quarto Evangelho “designa a esfera dos homens e dos afazeres humanos colocada em contraste ao mundo acima e ao Reino de Deus”.[16] Ao olhar com mais atenção para o prólogo de João, percebe-se que ele difere dos Evangelhos sinóticos. Enquanto estes, pelo menos Mateus e Marcos, relatam o fato da humanidade e descendência do Messias ser da linhagem de Israel, e a conseqüente obra messiânica de Jesus parecer restringir-se aos israelitas, João já começa com o Messias criador do universo e como vindo ao mundo. Não somente a Israel (Jo 1.9-10). Isso demonstra que a missão de Cristo foi universal e alcança toda a humanidade. Ele não é o Salvador de uma seita ou somente de uma nação, mas é o “Salvador do mundo” (Jo 4.42; cf. I Jo 4.14). Como visto, o mundo é objeto do amor de Deus (Jo 3.16). Jesus é o Cordeiro que “tira o pecado do mundo” (Jo 1.29), a luz do mundo (Jo 1.9; 8.12; 9.5), a propiciação pelos pecados do mundo inteiro (I Jo 2.2; cf. II Co 5.19). O Filho foi enviado ao mundo não para que o condenasse, mas “para o mundo fosse salvo por ele” (Jo 3.17).

Estes textos falam claramente que a salvação por meio de Cristo tem uma amplitude universal. No entanto, a universalidade da salvação não quer dizer que todos os homens, no final serão salvos, independente de sua posição frente a Cristo. Os benefícios da obra de Cristo são indissociáveis do Evangelho e, consecutivamente, só poderão ser recebidos através do Evangelho. Ao mesmo tempo em que pregar o Evangelho é falar de um fato consumado há quase dois mil anos atrás, deve-se chamar os ouvintes ao arrependimento e à fé, hoje. “A proclamação de Jesus como ‘o Salvador do mundo’ não é uma afirmação que todos os homens sejam salvos automaticamente, mas um convite dirigido a todos os homens a colocarem sua confiança naquele que deu sua vida pelos pecados do mundo”.[17] A salvação em Cristo está estritamente ligada à fé nele. Somente a fé nele é que salva. Há um duplo processo. Sem essa identificação com Cristo, não se pode usufruir os resultados da sua obra, ou seja, a vida eterna.

Disse Jesus: “Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo” (17.18; cf. 20.21). O objeto da salvação de Deus é o mundo e “da universalidade do Evangelho se deriva a universalidade da missão evangelizadora da Igreja”.[18] O Evangelho deve ser pregado a todas as nações e exigido de cada um que o ouve, o arrependimento para perdão dos pecados.
Ainda com relação ao mundo, como deve ser levado o Evangelho? Que princípio básico e essencial é encontrado em Cristo como modelo? O princípio da encarnação. “O Verbo estava no mundo...” (Jo 1.10); “O Verbo se fez carne” (Jo 1.14). Deus foi enviado ao mundo e aqui esteve com os homens. Ele assumiu a natureza humana. Tornou-se como os homens e experimentou as mesmas fraquezas, sofrimentos e tentações que estes experimentam. Levou sobre si os pecados dos homens e morreu a sua morte. Ele se identificou com os homens para que a Igreja também se identifique. Em relação a essa encarnação na missão, diz Stott:

"Um dos nossos fracassos mais típicos, evangelicamente falando, é, com toda a certeza, o fato de raramente levarmos a sério o princípio da encarnação... A nós, porém, parece-nos mais natural gritar o Evangelho para as pessoas, à distância, do que nos deixarmos envolver profundamente em suas vidas, preocupando-nos com os seus problemas de tal modo que pareçam nossos; partilhando, enfim, das suas próprias aflições".[19]

Se realmente a Igreja quer ter a Jesus como seu modelo missionário, deve atentar para a necessidade do esvaziamento de si mesma e se identificar com aqueles a quem a mensagem é dirigida, seja qual for a tribo, povo ou nação. Esse princípio da encarnação da missão é expresso de forma majestosa e impactante por Samuel Escobar:

"Seja a nossa atitude a mesma de Cristo Jesus, o qual, para chegar até nós, cruzou a fronteira entre o céu e a terra,
cruzou a fronteira da pobreza para nascer em um curral e viver sem saber onde iria reclinar sua cabeça a cada noite,
cruzou a fronteira da marginalização para abraçar publicanos e samaritanos,
cruzou a fronteira do poder espiritual para libertar os que eram afligidos por legiões de demônios,
cruzou a fronteira do protesto social para dizer verdades aos fariseus, escribas e mercadores do templo,
cruzou a fronteira da cruz e da morte para ajudar a todos nós a passarmos para o outro lado;
Senhor ressuscitado que por isso nos espera lá, em toda fronteira que tenhamos de cruzar com seu evangelho".[20]

b) Jesus envia a sua Igreja para servir
Como modelo missionário para a Igreja, Jesus veio ao mundo para servir. Não somente veio para pregar ou salvar, mas também para servir. Aqueles que estavam esperando o Messias estavam familiarizados com a figura do “Filho do homem” de Daniel 7.13-14, que possuía todo e poder e por todas as nações era servido. Porém, Jesus sabia que antes de receber todo esse poder e domínio, ele teria de servir e suportar as provações. Na verdade, em Jesus fundem-se duas figuras do Antigo Testamento, que na mente dos judeus, ávidos por libertação de Roma, não havia conciliação: o “Filho do homem” de Daniel e o “Servo Sofredor” de Isaías. Jesus fez essa conciliação quando disse: “Pois o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mc 10.45). A sua morte expiatória selou a sua vida de serviços. “Em seu ministério público Jesus proclamava o Reino de Deus e falava das suas implicações; saciava bocas famintas e lavava pés sujos. Curou enfermos, confortou melancólicos, ressuscitou mortos, colocando-se altruisticamente a serviço dos outros”.[21]

Desse modo, a missão da Igreja tem como característica servir, assim como Jesus serviu. Ele deu o modelo de como servir e isso a obriga a caracterizar-se, na sua prática, como Igreja missionária de servidores. Eis, agora, três características de como Jesus realizou sua missão tornando-se modelo para a Igreja.

(1)Humildade. Toda a vida de Jesus enquanto apóstolo do Pai aqui na terra foi uma vida de submissão (5.30; 7.18; 9.4). Um dos exemplos mais característicos de sua humildade foi a lavagem dos pés dos discípulos (13.12-17). Se ele é Senhor e Mestre lavou os pés deles, eles também deveriam fazer o mesmo, “porque eu vos dei o exemplo”, disse Jesus (v. 15). Jesus realizou a sua missão e serviço em plena humildade, assim também a Igreja deve fazer. Como diz del Pino, “não somos maiores que Jesus e isto deve conduzir-nos a uma atitude de submissão a Deus”.[22]

(2) Misericórdia. Embora esta palavra e seus derivados não apareçam em João, na análise das declarações de Cristo em 5.24; 6.29; 12.44-45 e 17.3, por exemplo, fica claro que a encarnação de Jesus Cristo com o propósito de trazer salvação a um mundo que rejeita a Deus, é um ato de misericórdia. Assim, a misericórdia e a redenção “são o próprio coração, essência e natureza dessa missão”.[23] A misericórdia do Senhor Jesus não deve ser vista somente nos resultados finais de trazer vida eterna aos pecadores, mas foi demonstrada durante todo o seu ministério (cf. Mt 9.13; 23.23; Lc 10.37). Da mesma maneira Jesus espera misericórdia no desenvolvimento da missão do Deus Triúno (cf. Mt 5.7). O paralelo mais próximo da misericórdia de Jesus, em João, é graça (1.14, 16, 17).

(3) Amor. O amor de Deus pelo Filho e pela humanidade é o fundamento motivador da missão. Como descrito no capítulo 2, o amor incondicional e eterno do Pai é a única motivação da sua missão (3.16, 35; 14.31; 15.19; 17.23). Assim como o amor do Filho pelo mundo caracterizou a sua missão, assim também a missão cristã deve ser caracterizada pelo amor dos irmãos, uns pelos outros (João 13.34-35) e pelo mundo. Assim diz o apóstolo Paulo: “o amor de Deus é derramado em nosso coração pelo Espírito Santo” (Rm 5.5).

Desse modo, a missão da Igreja é identificada pela missão do Filho, ou seja, nele a Igreja deve ser modelada ao participar da missio Dei. Ela é caracterizada pelo seu envio ao mundo e pelo serviço em amor, misericórdia e humildade. E, assim, dá continuidade à missão do Filho, proclamando-o como redentor, na autoridade de seu nome.

Entretanto, a Igreja por si só não está capacitada para realizar a missão para a qual foi enviada. Como diz del Pino e como ressaltado no capítulo anterior, “a presença e a atuação especial do Espírito Santo, tanto na Igreja, quanto no mundo que rejeita a Deus, são fatores básicos sem os quais a Igreja não tem como realizar a sua missão”.[24] É sobre a capacitação do Espírito no cumprimento da missão da Igreja que versará o próximo item.

5.3. O Espírito Santo e a Missão da Igreja
Em seu livro sobre o Espírito Santo, John V. Taylor assim inicia: “O principal protagonista da missão histórica da Igreja cristã é o Espírito Santo. Ele é o diretor de todo o empreendimento”.[25] Esse fato é central quando se observa a capacitação do Espírito na vida do Senhor Jesus e a extrema influência e direção do Espírito na Igreja no livro de Atos, no cumprimento de suas missões específicas. Numa análise em João, chega-se à conclusão que os discípulos estavam no meio termo. Jesus disse, no último dia da festa dos Tabernáculos, que aquele que tivesse sede poderia ir até ele e beber – referia-se a crer –, e se alguém crer nele, do “seu interior fluirão rios de água viva”. Sobre isso, João comenta: “Isto ele disse com respeito ao Espírito que haviam de receber os que nele cressem; pois o Espírito até aquele momento não fora dado, porque Jesus não havia sido ainda glorificado” (Jo 7.37-39). A doação do Espírito, por meio do Cristo glorificado, se deu no dia de Pentecostes (At 2.1-4). Com isso não se quer dizer que o Espírito não estava presente na antiga aliança, mas que, no dia de Pentecostes, ele entrou num relacionamento mais íntimo com os crentes (Jo 14.17; cf. I Co 6.19).

A ação do Espírito na missão da Igreja e, através desta, no mundo, assume um papel principal. Após a comissão dos discípulos (Jo 20.21), Jesus comunica o meio pelo qual eles realizariam a missão: “... soprou sobre eles e disse: Recebei o Espírito Santo” (Jo 20.22). Os discípulos só podiam permanecer fiéis no testemunho do Evangelho por contar com a paz de Deus e com o poder do Espírito Santo. O ministério deles, bem como o da Igreja hoje, é dizer ao mundo que o perdão dos pecados está disponível somente por meio de Cristo. Por isso continuou Jesus: “Se de alguns perdoardes os pecados, são-lhes perdoados; se lhos retiverdes, são retidos” (Jo 20.22). Mas o que significa essa promessa? De acordo com Bruce, “os dois passivos – são-lhes perdoados e são retidos - subentendem a ação divina; a função do pregador é declarar, e é Deus quem, na verdade, perdoa ou retém. Os servos de Cristo não recebem nenhuma autoridade independente da dele, nem qualquer garantia de infalibilidade”.[26] Desse modo, não há garantia contra o erro dos discípulos ou da Igreja. Mas um fato é certo. O Espírito Santo suprirá a Igreja em suas ações enquanto ela se apega a Cristo. E isso é a única necessidade da Igreja e nessa promessa ela pode confiar.

A unção do Espírito é a capacitação indispensável e suficiente para a continuação da missio Dei. Como já foi dito no capítulo anterior, pelo menos cinco vezes no discurso de despedida, Jesus prometeu a vinda do Espírito (Jo 14-16). Uma síntese dessa obra do Espírito na Igreja, no mundo incrédulo e em relação a Cristo é a seguinte: o Espírito Santo (o Ajudador) que é enviado pelo Pai (Jo 14.26) e pelo Filho (15.26), testemunhará do próprio Filho (15.26), de modo que os homens possam reconhecer a verdade da mensagem dos discípulos acerca de Cristo. O Espírito também convencerá o mundo do pecado, da justiça e do juízo (16.8-11). Guiará os discípulos em toda verdade (14.17; 16.13), bem como exercerá uma importante função ao trazer à lembrança o ensino de Jesus (14.26). E ainda o Parácleto permanecerá continuamente com a Igreja como seu Mestre divino (14.17, 26). Desse modo, o protagonismo do Espírito na missão histórica da Igreja é evidente e essencial. “Por meio do Espírito, a Igreja pode agir em lugar de Deus como Deus agiu com Seu Filho... A Igreja agora executa a missão e, através dela, a missio Dei se torna visível ao mundo”.[27] Portanto, sem a capacitação do Espírito não existiria missão entre os homens. E, de fato, a missão é do Deus Triúno. A missão é de Deus. A Igreja tem o privilégio de cooperar (cf. I Co 3.7-9).

Certamente um parágrafo, intitulado “Deus, o Evangelista”, produzido pelo Manifesto de Manila, no II Congresso Internacional de Evangelização Mundial (1989), resume muito bem e acertadamente a obra do Espírito quanto à missio Dei:

"As Escrituras declaram que Deus é o principal evangelista. Pois o Espírito de Deus é o Espírito da verdade, do amor, de santidade e poder, e sem Ele o evangelismo é impossível. É Ele quem unge o mensageiro, confirma a palavra, prepara o ouvinte, convence o pecador, ilumina o cego, restitui vida ao morto, nos capacita para o arrependimento e à fé, nos une ao Corpo de Cristo, garante-nos a condição de filhos de Deus, leva-nos a assumir o caráter e o serviço cristãos e nos envia para sermos testemunhas de Cristo. Em tudo isso a preocupação principal do Espírito Santo é glorificar Jesus Cristo, mostrando-O a nós e formando-O em nós."[28]

Conclusão
“Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio” (Jo 20.21), disse Jesus aos seus seguidores no passado. E durante o decorrer dos séculos ele continua enviando a sua Igreja. As mesmas palavras daquela comissão pós-ressurreição devem ecoar na Igreja de todos os tempos. A Igreja só é Igreja enquanto co-participante, cooperadora e continuadora da missão do Filho. Jesus continua a enviar seu povo a todas as etnias. Mesmo em face de um mundo hostil, que rejeita a Deus, sua graça e misericórdia hão de alcançar aqueles que ele escolheu antes da fundação mundo (Ef 1.4-5). Para isso, no entanto, a mensagem da cruz tem de ser pregada, proclamada e vivida, pois a salvação e a vida eterna estão disponíveis a todo o que crer em Jesus. No poder do Espírito Santo, a Igreja tem o privilégio e a responsabilidade de levar a mensagem de vida eterna e perdão dos pecados em todos os campos de colheita espalhados pelo mundo (Jo 4.38). A consciência da missão da Igreja moderna passa por um período de falta de fervor e convicção por causa de sua aderência superficial e nominal à verdade de Deus, que é, em última análise, falta de devoção a Cristo. A Igreja desfalecida de hoje só alcançará novamente sua vitalidade por meio da renovação de seu compromisso de pregar ousadamente a Jesus, o apóstolo de Deus.[29]


[1] Citado por LIDÓRIO, Ronaldo. Verdadeiro Cristianismo ou Falsa Religiosidade. In: www.ronaldo.lidorio.com.br/ler_verdcristianismo.htm [acesso em 20 de mar. 2002].
[2] STOTT, J. R. W. Christian Mission in the Modern World. Downers Grove: InterVarsity, 1975. p. 23.
[3] CARRIKER. Missão Integral. p. 219. Ver também ERDMANN. Mission in John’s Gospel and Letters. p. 222. DEL PINO. O Apostolado de Cristo e a Missão da Igreja. p. 61. SENIOR e STUHLMUELLER. Os Fundamentos Bíblicos da Missão. p. 397. STOTT. A Base Bíblica da Evangelização. p. 35.
[4] VICEDOM. A Missão como Obra de Deus. p. 45.
[5] ERDMANN. Mission in John’s Gospel and Letters. p. 220.
[6] STOTT. A Base Bíblica da Evangelização. p. 38.
[7] ERDMANN. Mission in John’s Gospel and Letters. p. 221.
[8] HENDRIKSEN. John. 2:240-241.
[9] BARRETT, C. K. The Gospel According to St. John. London: SPCK, 1975. p. 474.
[10] DEL PINO. O Apostolado de Cristo e a Missão da Igreja. p. 63.
[11] VICEDOM. A Missão como Obra de Deus. p. 16.
[12] Ver DEL PINO. O Apostolado de Cristo e a Missão da Igreja. p. 64.
[13] STOTT. Ouça o Espírito, Ouça o Mundo. p. 368.
[14] HENDRIKSEN. John. 2:460.
[15] PADILLA, C. René. Missão Integral. 1 ed. São Paulo: Fratenidade Teológica Latinoamericana –Brasil e Temática, 1992. p. 16.
[16] LADD. Teologia do Novo Testamento. p. 202.
[17] PADILLA. Missão Integral. p. 18.
[18] PADILLA. Missão Integral. p. 18.
[19] STOTT. A Base Bíblica da Evangelização. p. 36.
[20] ESCOBAR, Samuel. Desafios da Igreja na América Latina: história, estratégia e teologia de missões. 1 ed. Viçosa: Ultimato, 1997. p. 84-85.
[21] STOTT. A Base Bíblica da Evangelização. p. 36.
[22] DEL PINO. O Apostolado de Cristo e a Missão da Igreja. p. 65.
[23] Ibid. p. 60.
[24] DEL PINO. O Apostolado de Cristo e a Missão da Igreja. p. 63. Nota 23.
[25] Citado por STOTT. A Verdade sobre o Evangelho: um apelo à unidade. Curitiba: Encontro e São Paulo: ABU, 2000. p. 114.
[26] BRUCE. João. p. 335.
[27] VICEDOM. A Missão como Obra de Deus. p. 63.
[28] Citado por STOTT. A Verdade sobre o Evangelho. p. 115.
[29] Ver ERDMANN. Mission in John’s Gospel and Letters. p. 226.


Pr. Robson Rosa Santana

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