3 de junho de 2021

Do sofrimento à glória: ensinos do ministério de Cristo (1 Pedro 3.18-22)

     

     Texto bíblico - Nova Almeida Atualizada - NAA

"Pois também Cristo padeceu, uma única vez, pelos pecados, o justo pelos injustos, para conduzir vocês a Deus; morto, sim, na carne, mas vivificado no espírito, no qual também foi e pregou aos espíritos em prisão, os quais, noutro tempo, foram desobedientes, quando Deus aguardava com paciência nos dias de Noé, enquanto se preparava a arca, na qual poucas pessoas, apenas oito, foram salvas através da água. O batismo, que corresponde a isso, agora também salva vocês, não sendo a remoção das impurezas do corpo, mas o apelo por uma boa consciência para com Deus, por meio da ressurreição de Jesus Cristo, que, depois de ir para o céu, está à direita de Deus, ficando-lhe subordinados anjos, potestades e poderes."

 Introdução

O apóstolo Pedro vinha falando sobre como os cristãos deveriam entender e reagir ao sofrimento. O nosso texto dos versos 18 a 22 mostra uma continuidade e descontinuidade com o texto anterior. Continuidade porque continua falando sobre sofrimento, mas, ao mesmo tempo, há uma descontinuidade porque os sofrimentos de Jesus são incomparáveis, é o cumprimento da Sua obra salvadora planejada desde a eternidade.

 Podemos ver nesse texto quatro divisões claras:

1) Cristo morto e vivificado (3.18)

2) Pregação aos espíritos em prisão (3.19,20a)

3) O dilúvio como tipo do batismo dos crentes em Cristo (20b,21a)

4) Ressureição, ascensão e autoridade de Jesus sobre os espíritos (3.21b,22)

 Neste texto Pedro traz seu relato da obra de Cristo, no entanto, é preciso ressaltar esse texto possui muitas dificuldades de interpretação. É um dos textos mais difíceis de compreender. Não vou abordar os diferentes modos de entendê-lo, mas trazer a interpretação mais comum entre especialistas reformados.

 

1. Cristo morto e vivificado (3.18)

“Pois também Cristo padeceu, uma única vez, pelos pecados, o justo pelos injustos, para conduzir vocês a Deus; morto, sim, na carne, mas vivificado no espírito”.

Quatro ensinos maravilhosos se desenvolvem nesse verso:

Primeiro, “Cristo padeceu”. O verbo padecer aqui é um eufemismo para a morte. De modo claro e direto, o ministério principal de Jesus foi morrer pelos pecadores eleitos. Quando diz que foi “uma única vez” é porque na antiga aliança o sumo sacerdote entrava no lugar mais sagrado do templo, o Santo dos Santos, e fazia a aspersão do sangue de animais sacrificados para expiação do pecado do povo (Lv 16.3–34; Hb 9.7,25), assim também Jesus, como o Cordeiro de Deus, sofreu pelos pecados de seu povo de uma vez por todas (Hb 7.27; 9.26,28; 10.10,14).

Em segundo lugar, Pedro fala acerca de uma das verdades mais essenciais das Escrituras, a justificação. Ele diz que Jesus Cristo levou sobre si os pecados de pessoas injustas. Ou seja, por sua graça e amor Ele sofreu injustamente em nosso lugar, pois somente o seu sacrifício na cruz é que possibilita ao pecador ser salvo, nada mais. Nem um outro meio ou qualquer obra humana pode contribuir para a salvação do pecador. Como Deus é justo, Ele não poderia deixar punir os pecadores, mas como Ele cheio de graça, Jesus se ofereceu em nosso lugar. Como escreveu Paulo em 2 Coríntios 5.21: “Aquele que não conheceu pecado, Deus o fez pecado por nós,  para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus”.

Em terceiro lugar, aprendemos nesse verso 18 que a morte de Jesus, como ventilei antes, é a única possibilidade do ser humano ter acesso a Deus, restabelecendo, assim, um relacionamento pessoal com Ele. Como diz Simon Kistemaker: “Ao remover o pecado como causa de nossa alienação em relação a Deus, Jesus oferece acesso a Deus e nos torna aceitáveis aos seus olhos” (2006, p.191).

Por fim, Pedro faz o contraste entre a morte e ressurreição de Jesus: “morto, sim, na carne, mas vivificado no espírito”. As dificuldades do texto começam por aqui. Qual o significado para palavra “espírito”. Será que fala do espírito humano de Jesus ou do Espírito (com letra maiúscula) referindo ao Espírito Santo? Algumas traduções trazem as duas formas. Como é possível resolver essa questão? Observando alguns pressupostos teológicos podemos dizer que não se refere ao espírito de Cristo, pois, como é claro nas Escrituras, o espírito não morre, ou seja, é imortal. E como os verbos morto e vivificado estão na voz passiva, é possível deduzir que foi um agente externo que o vivificou. E como Pedro diz que o agente foi o espírito, compreendemos que se refere ao Espírito Santo.

 

2. Pregação aos espíritos em prisão (3.19,20a)

no qual também foi e pregou aos espíritos em prisão, os quais, noutro tempo, foram desobedientes, quando Deus aguardava com paciência nos dias de Noé, enquanto se preparava a arca”

As dificuldades de interpretação continuam pelo verso 19. Como disse D. Edmond Hiebert, em First Peter (p.226): “Cada uma das nove palavras no original já foi compreendida de diferentes maneiras”. Como disse antes, não vou me ater as possibilidades de interpretação, mas trazer a que entendo ser a mais plausível.

 “No qual” é uma continuação do verso anterior, que faz referência ao Espirito. Assim, começando a tentar explicar esse verso podemos dizer que por meio do Espírito Santo Jesus pregou aos espíritos em prisão. O que o Cristo ressurreto pregou? E quem são esses espíritos?

Como alguns pensam, Jesus não foi pregar no inferno, onde estão as almas dos pecadores rebeldes contra Deus. Baseado em Apocalipse 20.7, 2 Pedro 2.4 e Judas 6, os únicos espíritos que estão em prisão são os anjos caídos, melhor identificados como demônios.

Como sabemos, a obra redentora de Jesus não alcança os anjos caídos. O que Jesus pregou a eles então? Jesus pregou sua vitória sobre seus adversários. Cremos que Colossenses 2.15 nos ajuda a compreender assim: “E, despojando os principados e as potestades, publicamente os expôs ao desprezo, triunfando sobre eles na cruz”. Além disso, fica claro na Bíblia que a esperança de salvação em Cristo se dá enquanto as pessoas têm vida. Afirmou muito bem Kistemaker: “Quando se fecha a cortina entre o tempo e a eternidade, o destino do ser humano está selado e o período da graça e do arrependimento chegou ao fim” (2006, p.196). Resumindo: após sua morte e ressurreição, Jesus foi e pregou aos demônios sua vitória na cruz sobre eles.

Ainda o verso 20 diz: quando Deus aguardava com paciência nos dias de Noé. A paciência de Deus durou 120 anos antes da chegada do dilúvio e destruição da humanidade, com exceção da família de Noé. Na verdade, desde Adão até o dilúvio Deus exerceu sua longanimidade. Mas como a humanidade, mas do que nunca, estava dominada por esses espíritos imundos, apenas 8 pessoas foram salvas, Noé e sua esposa, seus filhos Sem, Cam e Jafé e as esposas de cada um deles.

 

3. O dilúvio como tipo do batismo dos crentes em Cristo (20b,21a)

“na qual poucas pessoas, apenas oito, foram salvas através da água. O batismo, que corresponde a isso, agora também salva vocês, não sendo a remoção das impurezas do corpo, mas o apelo por uma boa consciência para com Deus”.

Aqui Pedro muda de assunto. Mostra que o dilúvio foi um tipo do batismo cristão, que é um símbolo da salvação em Cristo. As águas que afogaram quase toda a humanidade, foram as mesmas que fizeram boiar a arca, salvando a família de Noé. “O livramento de Noé das águas do dilúvio é visto como uma prefiguração e um símbolo do evento salvífico do batismo” (Müller, vol. 3, p. 906).

Sabemos que as águas naturais não salvam ou purificam as almas dos pecadores. Nos dois casos – Noé e Igreja – quem salva é o próprio Deus, através de Cristo Jesus. As águas do dilúvio e do batismo se relacionam da seguinte forma, “assim como as águas do dilúvio limparam a terra da perversidade humana, assim também a água do batismo indica a purificação do ser humano dos pecados” (Kistemaker, 2006, p. 202).

Na sequência Pedro explica que o batismo não é a remoção das impurezas do corpo”. Batismo não se refere a algo externo, pois o sacramento do batismo por si só não salva ninguém. Como ele continua no texto, o batismo é um “apelo por uma boa consciência para com Deus”. O batismo só tem valor como consequência de uma nova mentalidade acerca de Deus, da nossa compreensão como pecadores e do significado da obra de Cristo para nos salvar. Uma vez que a água do batismo aponta para a purificação dos pecados, os que se batizam devem responder com um modo de vida digno do evangelho de Cristo e para a glória do Deus Triúno.

 

4. Ressureição, ascensão e autoridade de Jesus sobre os espíritos (3.21b,22)

“por meio da ressurreição de Jesus Cristo, que, depois de ir para o céu, está à direita de Deus, ficando-lhe subordinados anjos, potestades e poderes”.

Finalizando sua exposição sobre o ministério de Cristo, Pedro continua falando sobre o batismo referindo-se à ascensão de Cristo, seu lugar à direita do Pai e seu autoridade sobre os espíritos. Mais uma vez vemos no Novo Testamento sobre a doutrina fundamental da ressurreição de Jesus, como a aceitação da parte do Pai da sua obra na cruz para salvar o pecador e a garantia da vitória do povo que deposita toda sua fé nele.

À destra de Deus Jesus exerce sua autoridade sobre todo reino espiritual. No final do verso 22 Pedro diz ficando-lhe subordinados anjos, potestades e poderes”. Jesus tem domínio sobre anjos bons e maus. Especialmente, declara vitória sobre as forças espirituais do mal. Como está escrito em 1 Coríntios 15.24, Cristo irá “entregar o reino ao Deus e Pai, quando houver destruído todo principado, bem como toda potestade e poder”.

Em Mateus 22.41-46 Jesus aplica a si mesmo o Salmo 110.1, mostrando que ele seria entronizado e triunfaria sobre seus inimigos: “Disse o Senhor ao meu senhor: “Sente-se à minha direita, até que eu ponha os seus inimigos por estrado dos seus pés.” Como comenta Calvino: “o objetivo de Pedro, pois, é apresentar, por esses títulos supremos, a soberania de Cristo” (2015, p.241).

 

Conclusão

Finalizo esse estudo trazendo um resumo do que foi visto e alguma aplicação prática para nós:

1. O próprio Deus Filho encarnado não ficou sem sofrimento enquanto esteve nesse mundo. E sabemos que padeceu sem ter cometido pecados.

2. Em conexão com a primeira conclusão, Jesus sofreu em nosso lugar, ou seja, por nossa causa, pois nenhum ser humano é capaz de pagar um pecado quer que seja. O justo Jesus padeceu pelos injustos.

3. O sacrifício de Jesus foi único e suficiente. No Antigo Testamento eram oferecidos sacrifícios continuamente. Somente o sacrifício de Jesus é suficiente para pagar pelos pecados de pessoas do mundo inteiro, e de todas as épocas, até a sua segunda vinda. O ser humano não pode contribuir com nada. Somente Cristo tira os pecados.

4. O propósito maravilhoso da sua morte e ressurreição foi nos levar de volta a Deus. Não foi por acaso que quando ele morreu o véu do santuário foi rasgado de alto a baixo (Mt 27.51; Mc 15.38; Lc 23.45). Seu sangue é o novo e vivo caminho que nos leva ao Pai (Hb 10.19-20). Em Cristo temos justificação, reconciliação, filiação, comunhão e acesso a Deus.

5. Se ele sem pecados sofreu por causa das nossas injustiças, por que não deveríamos sofrer com mais resignação? Não poderia usar palavras melhores do que Matthew Henry (2008, v.2, p.875-876) para aplicar a nós:

Se Cristo não ficou isentos de sofrimentos, por que os cristãos deveriam esperar isso?

Se Ele sofreu para expiar os pecados, por que não deveríamos estar satisfeitos se os nossos sofrimentos são só para provação e correção, mas não para expiação?

Se Ele foi ferido sendo perfeitamente justo, por que não seriamos nós, que somos todos culpados?

Se Ele sofreu uma vez, e entrou para a glória, não deveríamos ser pacientes nas dificuldades, pois será somente por um breve tempo e logo o seguiremos para a glória?

Se Ele sofreu, “para levar-nos a Deus”, não deveríamos submeter-nos às dificuldades, visto que elas são tão uteis para nos vivificar em nosso retorno a Deus e no cumprimento dos nossos deveres para com Ele?

 


Rev. Robson Santana
Pastor presbiteriano



PESQUISA:

KISTEMAKER, S. J. (2006). Epístolas de Pedro e Judas. 1a ed. São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã.
Henry, Matthew. Atos a Apocalipse. 1 ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2008.
Calvino, J. (2015). Epístolas Gerais. 1 ed.. São José dos Campos, SP: Editora FIEL.
Heinrich Müller, NIDNTT, vol. 3, p. 906.