18 de agosto de 2010

Não seja cúmplice da corrupção



Em 1940 o escritor austríaco Stefan Zweig (1881-1942) mudou-se para o Brasil. Nesse mesmo ano percorreu todo o país e no ano seguinte escreveu o livro Brasil, país do futuro. Já se passaram mais de 7 décadas e esse país previsto por Zweig ainda não chegou. Ao analisar as potencialidades que esta grande nação tem era para se chegar à mesma conclusão. 

O Brasil tem mais de 8.000 km de costas marítimas, éramos para ser uma das maiores potências em termos de mercado pesqueiro. Ainda recentemente, por exemplo, nos tornamos auto-suficientes na produção de petróleo. Temos um solo muito rico. Somos um dos maiores exportadores de grãos, como soja, trigo e milho. Um dos maiores exportadores de carnes, seja bovina, suína, avícola, etc. Produzimos uma das maiores riquezas em termos de produção de bens e serviços por ano, ou seja, somos um dos maiores Produto Interno Bruto (PIB) do mundo.

Creio que o autor do livro Brasil, país do futuro também percebeu as potencialidades em termos da produção de riqueza, e disse “esse país tem tudo para crescer e se desenvolver”. Mas, por que o futuro previsto para o Brasil ainda não chegou? Quero dar a minha modesta contribuição, na minha limitada visão da nossa nação no presente, olhando também para o passado, e dizer que o Brasil não é o país do futuro porque é o país da corrupção!

Boa parte (entenda-se a maioria) dos políticos brasileiros não está muito interessada no crescimento real da nação. Num crescimento que gere distribuição de renda. Em que as camadas mais pobres e miseráveis possam de fato participar com melhoria de qualidade de vida. Por quê? Porque em primeiro lugar vêm os seus projetos pessoais. Seja realização pessoal de assumir algum cargo importante, seja enriquecer ilicitamente da forma mais rápida possível. No Brasil a corrupção corre solta aos olhos de toda a nação e chega-se a terrível conclusão que não acontece nada (nem se vai preso, nem se devolve o dinheiro roubado). É a corrupção e o desinteresse que perpetuam a situação de caos social por qual passa o Brasil.

Por que falo sobre isso? Não somente por causa da proximidade das eleições, mas porque há muitos crentes envolvidos na política com os mesmos interesses pessoais e egoístas dos ímpios que não temem a Deus. Infelizmente há irmãos que não percebem (ou não querem perceber) que seu apoio irrestrito e até apaixonado a candidatos que fazem campanhas caríssimas com dinheiro do povo - os quais vêem os cargos por eles pretendidos como fonte de enriquecimento fácil e rápido - como algo normal.

Deus nos deixa bastante claro em Sua Palavra: E não sejais cúmplices nas obras infrutíferas das trevas; antes, porém, reprovai-as” (Efésios 5:11). O crente em Cristo Jesus não deve participar do sistema opressor da corrupção que está tão às claras ultimamente. Deus está dizendo: “não sejam cúmplices”! O verbo correspondente a “sejais cúmplices”, no original bíblico está no imperativo, ou seja, Deus nos diz “não participem juntos”, “não se associem”, “não compartilhem” das obras das trevas. As obras das trevas referem-se a esfera do domínio de satanás e dos demônios! 

É evidente por que a Bíblia diz para não sermos cúmplices (participantes, envolvidos) com esse tipo de coisas. Porque agora somos “luz no Senhor”, “filhos da luz” (Ef  5.8). Na verdade, os filhos da luz devem reprovar, rechaçar, combater, denunciar, as obras das trevas, dentre as quais a corrupção. O filho da luz gera o fruto da luz: “toda bondade, e justiça, e verdade” (Ef 5:8).

Deve-se participar da boa política com interesse público, mas não ser cúmplices das obras das trevas, co-participantes da corrupção e do assalto aos cofres que é do povo por direito. No aspecto espiritual é preciso lembrar que os corruptos não herdarão o reino dos céus: “Ou não sabeis que os injustos não herdarão o reino de Deus? Não vos enganeis: [...] nem ladrões, nem avarentos, [...], nem roubadores herdarão o reino de Deus” (1 Coríntios 6:9-10).

Robson Rosa Santana


15 de agosto de 2010

Confusão na igreja evangélica

Estamos confusos. Estamos com dúvida do que seja ser cristão, do que é a igreja e como devemos nos envolver com parte dela (sendo igreja, melhor dizendo). Pergunto a você: o que significa ser cristão? Há vários líderes que dizem não serem mais evangélicos, por causa do caos no mundo evangélico. Querem ser apenas cristãos, mas, repito, o que é ser cristão? Ou sendo mais específico: qual a implicação se ser cristão e ser igreja de Cristo?
Ser cristão no passado significava ter uma vida verdadeiramente transformada por Jesus, ser habitado pelo Espírito Santo e ser obediente a Deus de todo o coração. Quando pecava, havia grande tristeza, arrependia-se e pedia perdão a Deus, buscando novo compromisso e fidelidade.
Muitos crentes hoje não têm a Bíblia como sua única regra de fé e prática. Agora virou um negócio chamado “eu senti no coração”, “senti de Deus”; mesmo que esse tal de “senti de Deus” seja contrário à revelação de Deus. Outro dia um pastor me falou que uma ovelha solteira, encontrou com um rapaz não crente no ônibus e começaram a conversar. No decorrer do bate papo houve uma identificação das histórias sentimentais, por fim, a “química”. Apaixonaram-se e depois a jovem disse que era Deus que estava confirmando aquele relacionamento. Pouco tempo depois casaram e pouco tempo depois entraram em crise e queriam separar. O que a Bíblia fala sobre isso? Case somente no Senhor (1 Co 7.39). Não se compreende mais o que é casamento e o compromisso diante de Deus entre os cônjuges.
Mais exemplo da confusão. A revista Época de 07/08/2010 retrata a crítica de muitos líderes evangélicos especialmente às más influências teológicas e morais das igrejas neopentecostais. Mostrando que há campanha, não organizada, mas contundente, de pastores de igrejas mais tradicionais contra as heresias, a ênfase no aspecto material e financeiro e a corrupção moral e financeira dos líderes e políticos “crentes”.
Quanto à tal da nova reforma protestante proposta por tais líderes deve servir de profunda reflexão para nós e muita coisa está correta. Mas não devemos engolir tudo sem uma devida análise e comparação com o que a Bíblia diz (1 Ts 5.21). Pois ser cristão é acima de tudo seguir ao Deus revelado na Palavra e viver em conformidade a essa mesma Palavra. Pois se não for assim, conclui-se que Deus é um ser contraditório. Ele fala uma coisa na Bíblia e depois fala outra ao nosso coração.
Devemos repensar a questão do institucionalismo da Igreja como uma agregação de coisas que não refletem a simplicidade do Evangelho registrado na Bíblia, mas não podemos desconstruir tudo que há nas igrejas por simples novidade ou modismo.
Muitos acham que os líderes centralizam o poder, e propõem uma descentralização, destituindo todo tipo de autoridade na Igreja. Porém foi Deus quem instituiu os líderes e continua chamando os seus para a edificação do restante da Igreja – e edificando-se mutuamente, é claro - para que assim desempenhem o seu serviço na igreja e como igreja, para a glória de Deus (Ef 4.7-16).
Os apóstolos e presbíteros de Jerusalém exerciam assim o seu chamado como líderes sob a autoridade concedida por Deus. Quando a graça de Deus chegou a Samaria por meio de Filipe, aquele conselho envia apóstolos para analisar o que de fato acontecia. Quando o evangelho chega a Antioquia, foram enviados Barnabé e Paulo para supervisionar o que ocorria entre os gentios. Quando a situação dos cristãos judaizantes complicava a vida cristã dos irmãos gentios, foi convocado o concílio de Jerusalém para analisar e decidir sobre a questão. Isso feito, prepararam um documento e delegados foram enviados para dar conhecimento da decisão, devendo, assim, ser cumprido por aqueles irmãos.
Concluo dizendo que devemos repensar como ser igreja no mundo pós-moderno que vivemos hoje. Devemos abolir tradições humanas que tornam a igreja irrelevante para nosso tempo, mas não podemos deixar de ver com os óculos da Palavra de Deus o que vem a ser a vida cristã, o que é Igreja e como deve ser sua relação com mundo ainda não alcançado com o evangelho da salvação.
Deus nos ajude,

Robson Rosa Santana

Use com permissão: rrsantana@hotmail.com ou na parte de comentários

13 de agosto de 2010

Introdução e Teologia de Atos

1. INTRODUÇÃO AO LIVRO DE ATOS

1.1. A Importância do Livro
O livro de Atos serve como uma ligação entre os evangelhos e as epístolas. Sua importância jaz no fato de que se Atos não tivesse sido escrito não teríamos quase nenhum dado acerca da Igreja Primitiva, teríamos apenas alguns insights das epístolas paulinas.
Atos não foi escrito do ponto de vista de um analista que observa fatos sequenciados, como semana após semana, ou dia após dia, mas do ponto de vista de um escritor que abre janelas e dá vívidos relatos de eventos e personalidades de uma época.
Lucas constrói uma ponte entre seu Evangelho e Atos (Lc 24.50-53). No final do Evangelho os discípulos são deixados no templo louvando a Deus. Em Atos, Lucas retoma a história e explica o que aconteceu depois. Como diz W. W. Wiersbe, “imagine quão confuso você estaria se, na leitura de seu Novo Testamento, você abrisse na última página de João e descobrisse – Romanos! ‘Como a Igreja chegou a Roma?’ Você se perguntaria! E a resposta é encontrada no livro de Atos”.[1]

1.2. Autoria
Há várias evidências de que o autor de Atos foi Lucas. Comecemos pelas evidências externas. Das afirmações mais antigas acerca da autoria de Atos as que sobreviveram foram, principalmente, as da segunda metade do século II d.C. O Prólogo anti-Marcionita de Lucas (c.160-180) relata Lucas como o terceiro evangelista e acrescenta também que ele é o autor de Atos dos Apóstolos. O Fragmento Muratoriano (c. 170-200) também afirma ser Lucas o autor da obra Lucas-Atos. Irineu menciona explicitamente que Lucas é o autor do Evangelho e de Atos em Adu. haer. iii. 1; 14 etc. Clemente faz o mesmo em Strom. v.12 e Adumbr. in  1 Pet. Tertuliano (Adu. Marc. iv. 2) e Orígenes (ap. Eusébio, História Eclesiática, vi. 25) ao defender a autoria de Lucas para o terceiro Evangelho, consequentemente o faz para o livro de Atos. Como escreve F. F. Bruce, “nós podemos continuar a acrescentar o testemunho de Eusébio e Jerônimo, mas é suficiente dizer que de c. 170 em diante a opinião consensual de todos que escreveram sobre o assunto é que o autor das obras ad Theophilum foi ‘Lucas, o médico amado’ de Cl 4.14”.[2]
Quanto às evidências internas, o livro de Atos não diz quem é seu autor. Mas, como já foi dito acima, desde os tempos mais antigos Lucas foi reconhecido como tal. Não se sabe muito a respeito dele, a não ser em três referências das epístolas paulinas (Cl 4.14; Fm 24, 2 Tm 4.11). Destas três referências pode-se chegar a três conclusões a cerca de sua pessoa. (1) Lucas era um médico; (2) foi um dos ajudadores mais valiosos de Paulo, pois esteve em sua companhia no seu último aprisionamento. (3) Deduz-se que Lucas era um gentio. Segundo Barclay, “Colossenses 4.11 conclui uma lista de menções e saudações daqueles que são da circuncisão, isto é, dos judeus; o verso 12 começa uma nova lista e naturalmente concluímos que a nova lista são de gentios”.[3]
Depois dessa breve descrição da pessoa de Lucas, vemos que no texto de Atos, a partir do cap. 16, aparecem passagens escritas na 1a pessoa do plural, “e a explicação mais plausível delas é que provêm da pena dalgum companheiro de Paulo, e que foram incorporadas em Atos sem mudança de estilo, porque o autor desta origem documentária foi o próprio autor do Livro”.[4] Algumas outras pessoas foram companheiras de Paulo quando esteve na prisão, tais como Timóteo e Aristarco, mas Lucas sobressai como o nome mais óbvio.

1.3. Destinatário
O livro de Atos é endereçado à mesma pessoa do evangelho de Lucas, a Teófilo (1.1).  Segundo Carson, Moo e Morris[5] e a introdução a Atos da Bíblia de Estudo de Genebra, provavelmente Teófilo foi um patrocinador de Lucas. Alguém que tinha recebido instrução cristã (Lc 1.4) e agora estava provendo sustento para pesquisa e escrita dos dois livros, do mesmo modo como outros historiadores tiveram patrocinadores. Por exemplo, Josefo foi patrocinado por Vespasiano e Tito, além de outros beneficiadores como Epafrodito[6].
Mas há outras suposições, uma vez que no texto bíblico não dá nenhuma explicação de quem seja Teófilo. A primeira é que Teófilo não seria um nome real. Pois naqueles primeiros dias era perigoso ser cristão. O nome Teófilo provém de duas palavras gregas, Theos, que significa Deus, e philein, que significa amar. E é possível Lucas ter escrito o livro para ‘alguém que ama a Deus’ ou ‘amigo de Deus’, cujo nome verdadeiro não foi usado por causa do perigo que poderia advir.
Há também a suposição, que parece a mais convincente, é que Teófilo era um importante oficial do governo romano. Chega-se a essa conclusão pelas palavras que Lucas usa em Lc 1.3, “excelentíssimo Teófilo”, que realmente significa “sua excelência”, e comparando com outros textos de Atos que foram usados para pessoas do alto escalão romano, como, por exemplo, “o excelentíssimo governador Félix” (23.26 e 24.3), o “excelentíssimo Festo” (26.25). Sendo Teófilo um alto oficial do governo, “talvez Lucas escreveu o livro para mostrar-lhe que o cristianismo era uma coisa amável e que os cristãos eram pessoas boas e finas”.[7] Poderia também ter sido escrito como uma defesa do cristianismo para persuadi-lo a não perseguir os cristãos.

1.4. Propósito
Lucas começa o livro de Atos reportando-se ao Evangelho, ‘o primeiro livro’. Diz que nesse primeiro livro relata as coisas que “Jesus começou a fazer e a ensinar” (1.1). Isso implica que no segundo livro é relatado aquilo que Jesus continuou a fazer após sua ascensão. Por isso o contraste entre os dois livros não se dá entre Cristo e a Igreja, mas entre os dois estágios do mesmo ministério de Cristo. “Assim, o ministério de Jesus na terra, exercido de forma pessoal e pública, foi seguido por seu ministério celestial, exercido através do Espírito Santo por intermédio dos seus apóstolos”.[8] Desse modo, o segundo livro de Lucas pode ser chamado ‘Atos do Cristo ressurreto’, ou ‘Atos de Cristo ressurreto através do Espírito Santo’, logo também poderia ser chamado de ‘Atos do Espírito Santo’.
Há alguns propósitos secundários no livro de Atos, tal como recomendar o cristianismo ao governo romano ou mostrar que o cristianismo era uma religião universal para todos os homens de todas as nações.[9] No entanto, o grande propósito de Lucas era mostrar a expansão do cristianismo, que teve início num canto da Palestina até alcançar a capital do Império Romano, de acordo com as palavras do Senhor Ressurreto em 1.8: “mas recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judeia e Samaria e até os confins da terra”.
Um esboço básico, em seis estágios, seguindo o propósito do progresso do evangelho até chega a Roma, é o seguinte: (1) 1.1 – 6.7: relata a Igreja em Jerusalém e a pregação de Pedro; (2) 6.8 – 9.31: descreve a expansão do cristianismo na Palestina e martírio de Estevão, seguida pela pregação em Samaria;  (3) 9.32 – 12.24: neste trecho é relatado a conversão de Saulo, a Igreja em Antioquia e a entrada do gentio Cornélio na Igreja através da pregação de Pedro; (4) 12.25 – 16.5: descreve a expansão da Igreja pela Ásia Menor e pregação na Galácia; (5) 16.6 – 19.20: Lucas relata como a Igreja chegou na Europa e a obra de Paulo em grandes cidades gentias, como Efésios e Corinto; (6) 19.21 – 28.31: mostra a chegada de Paulo em Roma e sua prisão domiciliar. Finaliza com Paulo “pregando o reino de Deus e, com toda intrepidez, sem impedimento algum, ensinava as coisas referentes ao Senhor Jesus Cristo”.
Cada um desses estágios finaliza com um relatório mostrando que a Palavra de Deus prevalecia e a Igreja crescia em número e no conforto e direção do Espírito Santo.

1.5. Data
Quando se analisa a data para o livro de Atos, percebemos que os estudiosos divergem. Três datas são sugeridas: antes de 70 d.C., 80 a 85 d.C. e 105 a 130 d.C. Não pretendo aqui trazer toda a discussão sobre os vários ponto de vista, mas ser o mais resumido e direto possível.
As duas datas mais recentes baseiam-se na hipótese de que o livro não foi escrito por Lucas, e que as informações a respeito de Teudas e Judas em Atos 5.36-37 são originárias das obras do historiador judeu Josefo (Antiguidades 18.4-10 e 20.97-98), escritos na segunda metade do século I. Mas o fato de Lucas citar um Teudas não quer dizer que seja o mesmo de Josefo, mas apenas um dos muitos revolucionários surgidos por causa da morte de Herodes, o Grande. Quanto ao Judas mencionado por Lucas, podemos usar o mesmo argumento de que Lucas não o cita derivado de Josefo, mas bem que poderia ser o contrário. Outro personagem bíblico que pensam que Lucas usou das fontes de Josefo, é o relato da morte do rei Herodes Agripa  I, em 44 d.C (At 12.19-22), por causa das semelhanças das palavras para descrever o evento, entretanto, ambos os relatos divergem consideravelmente.
Há algumas evidências no texto de Atos que nos levam a crer que o livro tenha sido escrito antes de 70 d.C., para ser mais preciso, antes de 64 d.C. (1) O livro termina com a prisão domiciliar de Paulo em Roma. Enquanto esperava pelo julgamento do imperador, Paulo tinha a liberdade para pregar o evangelho, uma coisa difícil de acontecer depois de 64 d.C., devido o incêndio de Roma por Nero, que colocou a culpa nos cristãos. (2) Atos não menciona a morte de Paulo, que parece iminente quando escreve a Timóteo (2 Tm 4). Sua morte se deu aproximadamente em 68 d.C. (3) Quase no final do livro, Lucas menciona o governo romano favorável ao cristianismo, coisa que mudou após 64 d.C., pelo motivo do primeiro argumento. (4) No texto de Atos Lucas usa algumas expressões de um cristianismo bem recente, por exemplo: “discípulo”; “o primeiro dia da semana”, que depois se torna o “Dia do Senhor” (Ap 1.10); “povo de Israel” (At 4.26), expressão que posteriormente compreenderia tanto judeus como gentios (Tt 2.14); o título mais antigo usado por Jesus de “Filho do Homem” (At 7.56).[10]

1.6. Fontes
Lucas pode ser considerado um dos maiores historiadores da Antiguidade.[11] Saber, então, de onde obteve as suas fontes é algo muito importante para o nosso presente estudo. As fontes de Atos podem ser classificadas em duas partes.
(1) Os capítulos 1 a 15. Nestes capítulos Lucas não teve conhecimento pessoal. Como sugere Barclay, Lucas tinha acesso a dois tipos de fontes. A primeira são os registros das igrejas locais. Talvez não tivessem sido escritos, mas essas igrejas tinham suas histórias. Por exemplo, o registro da Igreja de Jerusalém (At 1-5; 15-16); da Igreja em Cesareia (At 8 26-40 e 9.31-10.48); e da Igreja em Antioquia (11.19-30 e 12.25 – 14.28). A segunda refere-se às histórias em torno de grandes figuras da Igreja como Pedro, João, Felipe e Estevão. “Sem dúvida a amizade de Lucas com Paulo o colocaria em contato com os grandes homens de todas as igrejas e todos os seus registros e histórias estariam a sua disposição”.[12]
(2) Os capítulos 16 a 28. Esses capítulos revelam conhecimento pessoal, pois Lucas escreve na primeira pessoa do plural. Por exemplo, as seguintes passagens: 16.10-17; 20.5-16; 21.1-18; 27.1-28.16. Desse modo, os textos em que aparece o pronome “nós” explica que o autor estava com Paulo nesses momentos. Há estudiosos como Dibelius[13] e Barclay[14] que crêem que Lucas tinha um diário das viagens que fez na companhia do apóstolo, o que chamam de fonte de “itinerário”. Além desse testemunho ocular, Lucas pode ter coletado mais  informações durante o tempo que gastou com Paulo na prisão. Então, o fato de ser testemunha ocular, junto com outras anotações e o contato bem próximo com Paulo, explica claramente as fontes de Atos 16-28.


2. TEOLOGIA DE ATOS

Como foi dito acerca do propósito do livro Atos, não havia da parte de Lucas uma intenção de escrever a respeito da teologia da igreja cristã ou algo parecido, a exemplo das epístolas que trazem no seu bojo as doutrinas da fé cristã. No entanto, Lucas ao escrever sobre a expansão do cristianismo de Jerusalém, capital da Judeia, a Roma, capital de todo o império, não poderia deixar de registrar a teologia dos apóstolos, e outros discípulos, em suas pregações acerca da salvação, da igreja e assuntos afins. Desse modo, podemos resumir a teologia de Atos da seguinte forma:

2.1. Continuação da história da salvação
Segundo I. Howard Marshall, “a história registrada em Atos é considerada uma continuação dos atos poderosos de Deus registrados no Antigo Testamento e do ministério de Jesus[15]. Por exemplo, (1) os eventos em Atos são a realização dos propósitos de Deus (At 2.23; 4.27-29); (2) a vida da igreja era o cumprimento das Escrituras do Antigo Testamento, especialmente as profecias com relação ao derramamento do Espírito e a pregação do evangelho (2.17-21), a missão aos gentios (13.47) e a sua entrada na igreja (15.16-18), até mesmo a rejeição dos judeus para com o evangelho de Jesus, o Cristo, foi cumprimento profético (28.25-27).
“Ao proceder dessa maneira”, diz Carson, Moo e Morris, “Lucas deu a Teófilo (...) uma certeza de que a fé está firmemente alicerçada nos atos de Deus na História e de que a mensagem em que cremos é a mesma mensagem enviada da parte de Deus”.[16]

2.2. A missão e sua mensagem
Um resumo do conteúdo do livro de Atos pode ser as palavras de Jesus: “mas recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judeia e Samaria e até os confins da terra” (1.8). O livro relata o desejo de Deus de que a mensagem salvadora chegasse a todos os cantos da terra. E para que essa mensagem salvadora alcançasse o mundo era preciso realiza a missão de se ir até esses lugares. Isso não quer dizer apenas aspectos geográficos, mas onde houvesse gente, o evangelho deveria chegar. Ou seja, temos em Atos uma Teologia de Missão, e essa Missão não se cumpriu ainda. Essa foi a responsabilidade da igreja primitiva, com os apóstolos e os irmãos em geral, e essa é a responsabilidade da Igreja de todos os tempos.
Envolto na realização da missão de pregação do evangelho a toda terra, infere-se que existe uma mensagem para proclamar. Não eram as idéias ou conceitos criados pelo gênio humano que deveriam nortear a mensagem acerca da salvação. Jesus disse: “sereis minhas testemunhas”. Os crentes em Jesus deveriam ser testemunhas dele em dois aspectos. Enviados por ele e para falar dele. Ele é o sujeito e o objeto da mensagem missionária da igreja. Embora o livro narre a expansão da palavra de Deus, não nos é dado detalhes teológicos e profundos sobre como a pessoa de Jesus salva. Apenas nos é dito que ele é o salvador e quem cresse nele seria salvo (ver, por exemplo, Atos 16.31). Conforme Marshall:

Não fica claro em Atos de que modo Jesus funciona como Salvador, não se faz uma ligação muito estreita entre a Sua morte e a possibilidade da salvação (a não ser em 20.28), e obtém-se a impressão de que, realmente, foi por virtude de ter sido ressurreto dentre os mortos e exaltado pelo Pai que Jesus recebeu a autoridade para outorgar a salvação e levar a efeito os Seus atos poderosos na igreja. É, portanto, a ressurreição e a exaltação de Jesus que permanecem no centro da pregação em Atos[17].

2.3. O crescimento da Igreja mesmo em face da oposição
A oposição à continuação da obra salvadora de Deus na história começa no primeiro momento, ou seja, quando a Igreja (os apóstolos e outros discípulos) recebe o poder do Espírito para capacitá-los a cumprir sua missão. No mesmo dia de Pentecostes, cheios do Espírito, começaram a zombar deles (At 2.13); passa pela perseguição religiosa do Sinédrio (At 4.15-18; 6.8-15); Tiago foi assassinado por ordem do rei Herodes (At 12.1-2); Pedro também foi preso, mas Deus o livrou (At 12.3-11). O apóstolo Paulo e seus cooperadores também sofreram muita oposição e perseguição, mas foram perseverantes e continuaram a proclamar as boas novas de salvação e o evangelho crescia e se multiplicava.

2.4. A vida e a organização da Igreja
Pode-se resumir a vida de adoração da igreja primitiva da seguinte forma: (a) pequenos grupos – os cristãos se reuniam diariamente no templo e na casa uns dos outros e realizavam assim os propósitos fundamentais da igreja em todos os tempos, ou seja, doutrina (instrução), comunhão, ação social, adoração e evangelização (At 2.42-47; 4.32-37). (b) A estrutura da liderança -  os primeiros líderes, os apóstolos, foram escolhidos diretamente por Cristo, mas as outras funções de liderança, em termos de autoridades sobre os outros, dava-se por meio da escolha dos crentes, ou seja, pela comunidade. Assim surgiram os diáconos (At 6) e também os presbíteros, que também podem ser chamados de pastores ou bispos, pois exercem a mesma função de supervisão e cuidado do rebanho. (c) A obra missionária – nunca ocorria individualmente, assim como Jesus enviou os setenta de dois em dois, os apóstolos também faziam o mesmo, até mesmo com equipes de três ou mais integrantes. A estratégia da expansão da igreja por todo o império se deu especialmente com Paulo e seus companheiros e “o estudo pormenorizado da narrativa demonstra que, na realidade, Paulo passava períodos consideráveis de tempo nos importantes centros populacionais”[18] e, assim, surgiram igrejas fortes e outras não tão fortes assim, mas que na verdade deram prosseguimento à expansão da fé cristã por todo o mundo até os nossos dias.
Em relação à simplicidade da adoração na igreja primitiva, Adam Clarke diz que

É digna de atenção e admiração particular. Aqui não há cerimônias caras: nenhum aparato calculado meramente para impressionar os sentidos e produzir emoções no sistema animal, “para ajudar”, como tem sido tolamente dito, “o espírito de devoção”. O coração é o lugar  no qual este espírito de devoção é despertado; e o Espírito de Deus exclusivamente é o agente que comunica e mantém o fogo celestial; e Deus, que conhece e sonda este coração, é o objeto de sua adoração, e a única fonte de onde espera-se a graça que perdoa, santifica e torna-o feliz. [19]

2.5. A Dinâmica do Espírito
Creio que o fio condutor de todo o livro de Atos (bem como da história da Igreja) é o Espírito Santo de Deus. Os discípulos foram ordenados a permanecerem em Jerusalém até que fossem revestidos com o Espírito enviado pelo Pai e pelo Filho e desse modo fizeram. Somente com o derramamento do Espírito no dia de Pentecostes Jesus continuou a fazer as suas obras por meio da igreja. É o Espírito quem dá a tônica de toda a obra missionária, ou seja, é o Espírito Santo o consumador da obra de salvação ao mundo. Conforme Marshall,
O Espírito é a possessão que todo cristão tem em comum, a fonte da alegria e poder, e os líderes cristãos são pessoas que estão especialmente cheias do Espírito a fim de cumprirem suas várias funções. O Espírito guia a igreja na sua escolha dos líderes e na sua atividade evangelizadora, e isto de tal forma que Atos ás vezes tem sido descrito como o livro dos “Atos do Espírito Santo”.[20]



Pr. Robson Rosa Santana
IGREJA PRESBITERIANA DO BRASIL


* Reprodução autorizada desde que mantida a integridade dos textos, mencionado o autor e a fonte como: http://www.e-missional.blogspot.com  e comunicada sua utilização através da parte dos comentários ou e-mail: rrsantana@hotmail.com


  
NOTAS

[1] W.W.Wiersbe, Be Dynamic (Acts), Wheaton: Victor Books, 1987, p. 2. todas as traduções são de minha autoria.
[2] F. F. Bruce, The Acts of Apostles: the greek text with introduction and commentary, Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, p. 1.
[3] William Barclay, The Acts of the Apostles, Philadelphia: Westminster, 1955, xiv.
[4] I. Howard Marshall, Atos: introdução e comentário, São Paulo: Vida Nova, 1982,  p.43.
[5] Introdução ao Novo Testamento¸ São Paulo: Vida Nova, 1997, p.220.
[6] Bíblia de Estudo de Genebra, Moisés Silva, editor do Novo Testamento, São Paulo e Barueri: Cultura Cristã e Sociedade Bíblica do Brasil, 1999, p. 1269.
[7] Barclay,  The Acts of the Apostles, p. xv.
[8] John Stott, A Mensagem do Novo Testamento, São Paulo: ABU, 1990, p.30.
[9] Para um melhor desenvolvimento desses pontos, veja Barclay, The Acts of the Apostles, p. xvii-xviii.
[10] Bíblia de Estudo de Genebra, p. 1269.
[11] Bruce, The Acts of the Apostles, p. 15-18.
[12] Barclay,  The Acts of the Apostles, p. xix.
[13] Citado por Carson, Moo e Morris, em Introdução ao Novo Testamento, p. 227.
[14] Barclay,  The Acts of the Apostles, p. xix.
[15] Marshall, Atos, p. 21.
[16] Carson, Moo e Morris, Introdução ao Novo Testamento, p. 239.
[17] Marshall, Atos, p. 23.
[18] Marshall, Atos, p. 31.
[19] Adam Clarke, John through ActsAlbany (USA): AGES Software, Version 1.0, 1997 (CD-Rom).
[20] Marshall, Atos, p. 31.