28 de fevereiro de 2020

A Grande Comissão de Lucas (Lc 24.44-49)



INTRODUÇÃO

Lucas 24.44-49 é um texto de suma importância para o entendimento da missão de Cristo e a consequente missão da Igreja. Nele se vê a abrangência da obra de Cristo expressa por Sua própria boca. Jesus está plenamente cônscio de que aquilo que aconteceu com a Sua vida era o cumprimento das Escrituras Sagradas. Era necessário acontecer tudo o que ocorreu com Ele para que a salvação do pecador de todas nacionalidades e etnias pudesse ser alcançada.

Aliás, a própria boa nova de salvação através dEle também era cumprimento da Escritura. Esse Evangelho da graça de Deus é inclusivista. Não se restringia somente a Israel, como também aos gentios. Isso demorou para que seus discípulos entendessem. De fato, só começaram a compreender quando Ele lhes abriu o entendimento e depois do derramamento do Espírito em Pentecostes.

O cumprimento das Escrituras é o foco central desse texto. Por isso a expressão “está escrito”. Mas o que está por trás desse cumprimento é o propósito salvador de Deus na história da humanidade. Entender a obra de Cristo é ponto central para o cumprimento da missão de Deus, na qual a Igreja é privilegiada a participar. Principalmente em nossos dias em que há uma confusão quanto à validade das missões cristãs.

Alguns cristãos diriam que a missão é tudo que a Igreja é enviada ao mundo para fazer. Outros sentem que tal definição está por demais ampla e mantêm que a proclamação do Evangelho e a salvação das almas perdidas são a missão específica da Igreja. Ainda outros não veem a necessidade de proclamar o Evangelho com vistas à conversão de pessoas e sua incorporação na Igreja. Uns poucos estão começando a expressar dúvidas acerca da exclusividade de Cristo e a necessidade da fé Nele para a salvação.

Quando se analisa Lucas 24.44-49, chega-se à conclusão que esse discurso do Senhor Jesus faz parte das narrativas da Grande Comissão, paralela aos outros Evangelhos sinóticos e ao Quarto Evangelho. É um texto que reivindica a centralidade da obra de Cristo na proclamação das novas de salvação.


CONTEXTO HISTÓRICO ESPECÍFICO

O contexto histórico específico de Lc 24.44-49 é o da pós-ressurreição. Jesus ressuscita no terceiro dia do lugar chamado calvário, palavra de origem latina que quer dizer “caveira”, “crânio”. Mateus traduz como “lugar da caveira” (Mt 27.33) e certamente tinha esse nome sinistro por causa da forma da colina onde ocorriam as execuções.

Jesus foi posto num túmulo feito na rocha de um homem chamado José de Arimateia. Foi desse túmulo que Jesus ressuscitou no domingo de Páscoa. Neste mesmo dia encontra com alguns discípulos que estavam voltando de Jerusalém para Emaús.[1] Enquanto se hospedara na casa desses discípulos, dá-se a conhecer e desaparece. Então eles voltam a Jerusalém para contar aos onze e aos outros.

Enquanto contavam o fato da ressurreição, Jesus lhes aparece. A sequência imediata é a do texto de Lc 24.44-49. Este parágrafo começa com a conjunção coordenativa grega “de”, que comumente denota continuação e desenvolvimento de um pensamento mais distante, e toma sentido específico no contexto. Pode ser traduzida por “e”, “mas” e “então”. Em português só a ARA, traduz por “a seguir”, ao passo que a ARC, NVI e a KJV simplesmente traduzem por “e”, como se fosse um ato contínuo. Por que estou falando disso agora? Porque creio que o texto desta exegese não ocorre num momento imediato ao verso 43. Comparando com o texto de João 20.26-29, parece que Jesus parte novamente e depois de uma semana, de novo num domingo, aparece aos discípulos, quando Tomé estava presente. O contexto de Lucas não explicita, mas tudo leva a crer que os discípulos estavam no mesmo lugar em Jerusalém. Mateus relata que os onze foram para Galileia onde encontraram com Jesus num monte. Mas quando da sua ascensão Jesus estava próximo a Jerusalém, em Betânia (Lc 24.50-53).



A situação existencial do texto é bem distinta. O Messias, o Mestre, o Salvador dos judeus, havia morrido. Apesar do Senhor Jesus já ter prevenido seus discípulos que Ele havia de padecer e sofrer, e que no terceiro dia ressuscitaria, seus corações ficaram abatidos e temerosos. Por exemplo, em Lc 9.22, Jesus já havia advertido seus seguidores o que aconteceria com Ele num futuro próximo. Mas eles não entenderam.

O que aconteceu após sua crucificação foi uma desesperança total. A confiança e esperança estavam postos num Messias que iria resgatar a Israel e livrá-lo do poder romano, no entanto, ele morre. Essa foi a carga emocional dos discípulos no caminho de Emaús: “nós esperávamos que fosse ele quem havia de redimir a Israel; mas, depois de tudo, é já o terceiro dia desde que tais coisas sucederam” (Lc 24.21). Além da desesperança, o medo dos judeus também assolava seus corações, por isso estavam trancados dentro de uma casa (vide João 20.19). A desolação era total.

A situação existencial de Jesus pós-ressurreição pode-se dizer que foi de indignação: “ó néscios e tardos de coração para crer tudo os profetas disseram!” (24.25). Para alguns, o testemunho dos amigos não lhes convenceu. O próprio Jesus teve de aparecer-lhes e lhes mostrar os cravos e comer com eles, como que lhe dando um “atestado de vida”. A falta de entendimento dos discípulos foi tal que depois de quarenta dias lhes expondo as coisas do reino, eles ainda perguntam: “será este o tempo em que restaures o reino a Israel?” (At 1.6).

Apesar dos discípulos serem alentados pelo fato da ressurreição e presença de Cristo entre eles, uma compreensão maior da Messianidade de Jesus só se dá depois do Pentecostes. Por isso, penso que essa incredulidade e falta de discernimento dos discípulos deva ter entristecido ao Senhor. Mas louvado seja Deus porque ele sabia que depois do batismo com o Espírito Santo (At 2.1-4), eles viriam a entender mais estreitamente a vida e obra do Senhor Jesus Cristo, e as consequências da fé nele.


A CENTRALIDADE DA OBRA DE CRISTO NA PROCLAMAÇÃO DO EVANGELHO

Boa parte do que o Senhor Jesus ensinou aos seus discípulos não foram absorvidos de uma forma plena. Algumas parábolas que Jesus ensinava às multidões careciam de uma explicação à parte para os seus discípulos mais chegados. Uma das questões essenciais e menos entendida por eles era com relação ao Messias e seu sofrimento.

Já falamos da situação desesperadora dos discípulos no caminho de Emaús. Os quais esperavam um Messias que redimisse a Israel do poder romano (Lc 24.21). Essa era uma expectativa que reinava no coração do povo: um Messias libertador. O próprio Lucas relata que mesmo em face de lhes falar as coisas referentes ao Reino de Deus, nos quarenta dias de Jesus ressurreto, eles ainda, assim, não entenderam que o seu reinado não era desse mundo (Jo 18.36) e questionaram: “será esse o tempo em que restaures o reino a Israel” (At 1.6).

O texto de Lucas 24.44-49 é uma das narrativas de Jesus pós-ressurreição. Nessa revelação do Senhor Jesus Cristo é demonstrada a centralidade da obra redentora do Messias para a proclamação das Boas Novas da salvação. O primeiro passo dado pelo Senhor foi lhes abrir o entendimento para que compreendessem de forma plena aquilo que eles deveriam pregar posteriormente. Pois apesar de eles não estarem em trevas, como eles eram por natureza, ainda assim em muitas coisas eles estavam no escuro.

1. A CUMPRIMENTO DAS ESCRITURAS E A ABERTURA DO ENTENDIMENTO (vv. 44-46)

O texto começa com um “a seguir” como tradução da conjunção grega “de”. Essa tradução leva à conclusão de que o texto é uma sequência imediata de Lc 24.36-43, o que parece não ser assim. Primeiro, porque a tradução melhor para essa conjunção seria simplesmente “e”, pois normalmente ela denota continuação e desenvolvimento de um pensamento mais distante, tomando seu significado de acordo com o contexto. Podendo ser traduzida por “e”, expressar contraste, “mas” ou transição “então”, “ora” (com nenhum sentido de tempo).[3]

A versão Almeida Revista e Corrigida (ARC) traduz somente por “e”. Em alguns casos pode ficar sem tradução (e.g. Lc 4.1). Segundo, esse parágrafo parece ser paralelo a João 20.26-29, ocorrido uma semana depois da ressurreição e contava com a presença de Tomé. Na realidade, todos os eventos pós-ressurreição e ascensão de Cristo, no terceiro evangelho, dão a entender que aconteceram todos no mesmo domingo de Páscoa. No entanto, no livro de Atos, Lucas deixa claro que Jesus passou quarenta dias ensinando as coisas do Reino aos discípulos depois de ressurreto (At 1.3).

A seguir, Jesus diz algumas coisas essenciais a respeito do cumprimento da Escrituras com relação a Ele, o Messias. Jesus já havia falado aos discípulos algumas vezes o assunto. Eles as tinham ouvido. Mas parece que suas mentes estavam embotadas. Eles não compreendiam plenamente. O que Jesus quer dizer nesse verso 44 é que era necessário acontecer tudo o que aconteceu.[4]

Primeiro, porque as Escrituras já haviam predito. Segundo, porque Ele mesmo tinha lhes falado pessoalmente, enquanto estava com eles, antes de sua morte. Nesse verso, dentre outros, ele assume plenamente a sua messianidade: “importava que se cumprisse tudo o que de mim está escrito”. E se estava escrito, não poderia acontecer de outra forma. O restante do verso diz que estava escrito “na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos”.

Essa era a divisão da Bíblia Hebraica, ou seja, o nosso Antigo Testamento. A Lei de Moisés compreende os cinco primeiros livros da Bíblia: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Os Profetas era a segunda e maior parte da Bíblia dos judeus. Divididos em “profetas anteriores” e “profetas posteriores”. A primeira divisão compreende os seguintes livros: Josué, Juízes, 1o e 2o Samuel, 1o e 2o Reis. A segunda, os livros de Isaías, Jeremias, Ezequiel e os doze livros menores que vai de Oséias a Malaquias.

Quanto aos Salmos, provavelmente esse título englobava os “Hagiógrafos”, ou seja, os Escritos Santos, compreendia os livros de Salmos, Provérbios, Jó, Cântico dos Cânticos, Rute, Lamentações, Eclesiastes, Daniel, Ester, Esdras, Neemias e os dois livros de Crônicas. Esta divisão do Antigo Testamento era usada de longa data antes de Cristo. O que Jesus diz com isso é que em “cada uma” dessas divisões, havia predições a respeito Dele. O objeto ‘particular’ das predições a que Jesus ser refere era sua morte e ressurreição dentre os mortos. Uma das predições mais explícitas é o Salmo 16.9-11 (cp. At 2:24-32; 13:35).[5]

Dito essas coisas concernentes ao cumprimento das Escrituras em sua vida, Jesus age de forma totalmente soberana dando entendimento aos discípulos. “Então, lhes abriu o entendimento para compreenderem as Escrituras” (v. 45). O verbo “abriu” (gr. dienoixen) tem como sujeito o Senhor Jesus e está no indicativo aoristo ativo, isto é, foi uma obra imediata de Jesus em suas mentes. Há pelo menos dois aspectos dessa ação do Senhor ressurreto que precisam ser explicados. Por um lado, expressa o acesso imediato de Cristo ao espírito humano e o absoluto poder sobre ele, ao ajustar sua visão e retificar permanentemente pelo discernimento espiritual. Por outro lado, faz certo o modo de interpretar o Antigo Testamento que os apóstolos empregariam depois (veja Atos e as Epístolas), tendo a direta sanção do próprio Cristo.[6]

Após essa iluminação de mente, Jesus lhes mostra mais explicitamente o que as Escrituras falaram acerca Dele, especialmente sobre Sua morte e ressurreição. Mais uma vez Ele corrobora: “assim está escrito que o Cristo havia de padecer e ressuscitar dentre os mortos no terceiro dia” (v. 46). Aqui se manifesta a centralidade da obra de Cristo: cruz-ressurreição. Mesmo depois de lhes abrir o entendimento, Ele insiste naquilo que o Messias deveria passar. Em muitos momentos do ministério de Jesus, Ele já havia predito isso, e. g., Lc 9.22, 44; 18.31-33; 24.7.

Essa grande verdade do evangelho referente à morte e ressurreição de Jesus Cristo deveria ser pregada à humanidade (v. 46). Esse “está escrito” refere-se ao livro selado nos conselhos eternos de Deus, “no volume daquele livro da aliança da redenção; e assim estava escrito no livro aberto do Antigo Testamento, entre as coisas reveladas; e então assim importava que Cristo sofresse, pois as deliberações divinas deveriam ser executadas, e cuidado tomando de que nenhuma palavra de Deus caísse por terra”.[7] Vejamos alguns textos do AT cumpridos: Gn 3.15, Sl 22 e Is 53.

Os discípulos foram testemunhas dessas coisas (v.48). E sobre essas coisas eles deveriam pregar. Jesus os envia ao mundo, primeiro, para dizer o Cristo sofreria, como estava escrito. Vá e pregue o Cristo crucificado. Não era para que eles ficarem envergonhados de sua cruz, nem envergonhados de seus sofrimentos. Pois era preciso pregar que Cristo sofreu e, o mais importante, porquê sofreu; e assim as Escrituras do AT se cumpriram em seus sofrimentos. Importava que ele sofresse, pois era necessário para que os pecados do mundo fossem tirados e o gênero humano fosse libertado da morte e da ruína eterna. Segundo Hebreus 2.10, Deus aperfeiçoou o Autor da salvação, “por meio de sofrimentos”. Era necessário que o Salvador fosse Deus para satisfazer a justiça Divina, e fosse homem para identificar-se com ele e poder levar a sua culpa (2 Co 5.21).

Em segundo lugar, os discípulos deveriam pregar que Ele ressuscitou dentre os mortos no terceiro dia, não somente para que toda ofensa fosse lançada fora, mas também para que Ele fosse declarado Filho de Deus com poder, e nisso as Escrituras foram cumpridas (veja 1 Coríntios 15.3, 4). Nesse cumprimento do envio do Senhor Jesus era necessário que eles dissessem que frequentemente O viram ressurreto (cp. At 1.21-22).

Nessa parte de Seu discurso, Jesus coloca em ordem sua morte e ressurreição, e depois, os frutos que é produzido de ambos, ou seja, o arrependimento e a remissão de pecados. Isso acontece porque nosso velho homem é crucificado com Cristo (Rm 6.6) e pela sua graça nós podemos ressuscitar em novidade de vida. E purificados pela expiação de seu sangue, podemos obter a justiça através de sua ressurreição.

“Ele ensina, então, que nessa morte e ressurreição nós devemos procurar a causa e o fundamento de nossa salvação; porque daí em diante acontece a reconciliação com Deus e a regeneração para uma vida nova e espiritual”.[8] Desse modo, Jesus Cristo afirma categoricamente que nenhum perdão de pecado, nem arrependimento podem ser pregados senão em seu nome. Pois, por um lado, não temos o direito de esperar a imputação de justiça. E, por outro lado, não obtemos autonegação e novidade de vida, se ele não se fizer justiça e santificação por nós.[9]


2. O CARÁTER DA PREGAÇÃO DO EVANGELHO (vv. 47-49)

Fizemos essa divisão apenas para efeito didático. Pois esse discurso missiológico de Cristo, registrado por Lucas, nos dá conta que o cumprimento das Escrituras não se refere somente à morte e ressurreição de Jesus, mas também à obra missionária da Igreja. É preciso que se cumpra também o mandato missionário universal de Cristo. Como diz Donald Senior e Carroll Stuhlmueller, “todos os elementos dos vv. 46-48 estão compreendidos no conjuro da direção, ´assim está escrito´: a morte e a ressurreição de Jesus, a proclamação mundial de conversão e de perdão, o dom do Espírito à comunidade que dá testemunho”.[10] Desse modo, a vontade de Deus revelada nas Escrituras não será cumprida até que toda a carne tenha visto a salvação de Deus (Lc 3.6).

Uma vez feita essas considerações, os versos de 47-49 descrevem o estilo e o conteúdo da missão dos apóstolos e de toda a Igreja. Eles deixam claro os seguintes aspectos da pregação do evangelho: a) a chamada ao arrependimento e a remissão de pecados; b) o alcance da pregação; c) o testemunho apostólico e d) a fonte capacitadora e direcionadora da missão.

Como disse, a pregação também é cumprimento das Escrituras: “está escrito… que em seu nome se pregasse” (vv. 46-47). O verbo grego é kerisso e está no infinitivo aoristo passivo, e tem o sentido de proclamar ou pregar uma mensagem sagrada.

Antes de adentramos no conteúdo dessa pregação, é preciso ressaltar em nome de quem ela é feita. A pregação deve ser feita em nome de Cristo. Como diz Larkin Jr., “a legitimação imediata e dinâmica da mensagem vem da autoridade de Jesus”.[11] O nome envolve a pessoa, por isso o nome Jesus pode ser substituído simplesmente por “o nome”. Isso fica claro em At 4.12 quando Pedro disse que em nenhum outro nome importa que sejamos salvos.

Quando os apóstolos foram presos e açoitados pelos do Sinédrio, ao serem soltos ficaram alegres por serem “considerados dignos de sofrer afrontas por esse Nome” (At 5.41). Desse modo, deve-se pregar não só o nome, mas também em nome de Jesus. Jesus é tanto o objeto como o sujeito do kerygma da salvação. De acordo com Colossenses 3.17, toda a vida do crente é dominada pelo nome de Jesus, e sua glorificação é o objetivo da fé (2 Ts 1.12).

a) A chamada ao arrependimento e a remissão de pecados

O arrependimento (gr. metanoia) é a tristeza pelo pecado e o desejo ardente por abandoná-lo. Por isso era apropriado que a “necessidade” do arrependimento fosse pregada entre todas as nações, a todos os pecadores de todos os lugares, e.g., Atos 17.30.

O arrependimento é um característico básico da proclamação das Boas Novas de Deus. O homem precisa se arrepender da sua transgressão voluntária à Lei de Deus. Não tem como se obter a salvação sem uma devida contrição pelo pecado cometido contra o Deus santo, e não somente pelos pecados de comissão ou omissão, mais também pelo fato de ter uma natureza pecaminosa que leva a cabo sua rebelião. Deve também levar o pecador a ter repugnância e aversão pelo pecado.

John L. Dagg diz que “esse senso de pecado conduz a alma aos pés de Cristo para distinguir a genuína religião cristã das simulações de que este mundo está cheio”.[12] Tanto o precursor de Jesus (João, o batizador), quanto o próprio Jesus e os seus discípulos tiveram a incumbência de chamar os pecadores ao arrependimento (Lc 3.3; 5.32; 11.3; At 2.38; 3.19; 5.31). “Se, porém, não vos arrependerdes, todos igualmente perecereis” (Lc 11.3).

A consequência ou propósito desse arrependimento era o perdão ou remissão dos pecados. Apesar de defender o Textus Receptus, base para a tradução João Ferreira de Almeida, e que tem a conjunção kai, isso não altera em nada a sua conclusão. Uma vez que a remissão de pecados (gr. aphesin hamartion) também faz parte do cumprimento das Escrituras e não é algo paralelo ao arrependimento, mas é o resultado do arrependimento, como pode ser visto nos textos lucanos supracitados.

A pregação apostólica estava consciente de que somente o arrependimento por parte do pecador, ocasionado pela regeneração do Espírito, pode levar os homens a se reconciliar com Deus. A primeira pregação depois do revestimento e capacitação do Espírito Santo leva Pedro a responder aos judeus o que eles podiam fazer diante da obra de Cristo: “Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para remissão dos vossos pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo” (At 2.38).

Essa remissão (gr. aphesin), na nova aliança, não envolve um ato de passar dos pecados, como na antiga aliança (Rm 3.25), mas a sua remoção da mente de Deus, um tirar (Hb 10.18, cf. 10.3). A mensagem da salvação é uma obra graciosa de Deus, mas exige do pecador se arrependa, para que os seus pecados sejam anulados ou esquecidos por Deus. “Bem aventurado o homem a quem o Senhor não atribui iniquidade” (Sl 32.2).

b) O alcance da pregação

Depois de vermos que não há outro caminho para a salvação, a não ser crer na obra expiatória de Cristo e se arrepender de seus pecados, o Senhor Jesus nos revela que o alcance da sua obra redentora não se restringe somente a Israel. A obra messiânica não se resumiria aos israelitas. Mas, a todas as nações. A todas as etnias (gr. ta etnê).

Num sermão, Charles H. Spurgeon diz que “o texto [v.47] não são especulações ou sonhos entusiásticos; ele é a substância da ordem divina. Diz que o arrependimento e a remissão de pecados deveriam ser pregados em seu nome entre todas as nações. Neste ponto, então, nós temos a autorização divina para as missões”.[13]

Cristo agora revela claramente aquilo que tinha anteriormente ocultado: que a graça da salvação trazida por eles se estendia igualmente a todas as nações. Ainda Spurgeon: “nós existimos para pregar o evangelho por toda parte: missões existem para ser universal. Todas as nações precisam da pregação da palavra. O evangelho é o remédio para cada homem enfermo dentre todas as raças sobre a face da terra”.[14]

Mesmo que os profetas tenham pregado um chamamento para com os gentios, ainda não tinha sido revelado de tal modo que os judeus pudessem de bom grado admitir os gentios compartilhar com eles da esperança da salvação. Até Sua ressurreição, Cristo ainda não havia se dado a conhecer senão como o redentor do povo escolhido de Israel.

É na sua comissão para com os seus discípulos que, pela primeira vez, Jesus diz que o muro da separação posto entre judeus e gentios havia sido derrubado (Ef 2.14), que aqueles que eram estrangeiros (Ef 2.19) e que antes estavam separados, agora podiam ser reunidos no aprisco do Senhor.

Mesmo assim, entretanto, a aliança de Deus não poderia ser desfeita. Por isso, os judeus ainda tinham a primazia. E foi imposto aos apóstolos que eles deviam começar por Jerusalém (vide At 1.8), assim estava escrito (e.g., Is 2.3; Jl 2.32; 3.16).[15]

c) O testemunho apostólico

“Vos sois testemunhas dessas coisas” (v.48). O testemunho está intrinsecamente ligado à proclamação do Arauto do evangelho. Jesus está dizendo para eles: “vocês são testemunhas da minha vida, de meus sofrimentos, da minha morte e da minha ressurreição”. Esse foi um solene ofício para eles: testemunhar aquelas coisas ao mundo.

E mesmo em face dos obstáculos, dos sofrimentos e mesmo da morte, eles deviam ir e pregá-las a todas as nações.[16] Pode-se aplicar esse verso a nós hoje, pois de semelhante modo, todos os cristãos são testemunhas de Cristo. Nós mesmos somos as “evidências” de sua misericórdia e de seu amor e assim deveríamos viver para que outros possam ser levados a ver e a amar ao Senhor Jesus, nosso salvador.

d) A fonte capacitadora e direcionadora da missão

Tudo o que foi dito até agora acerca da obra redentora de Cristo e da consequente pregação dessa Boa Nova não teria resultado assegurado, se não fosse a obra do Espírito Santo na vida do emissor (pregador) e do receptor dessas Boas Novas da Salvação. Como Jonas orou no ventre do grande peixe, “a salvação é do Senhor” (Jn 2.9).

Sem a direção e a ação do Espírito nessa missão, nenhum pecador seria salvo. É por isso que toda a missão é missão de Deus (missio Dei), e a igreja é privilegiada em participar de Sua missão. Com isso, não queremos isentar o homem de sua responsabilidade. Pois apesar de ele responder a uma ação soberana do Espírito, é ele quem se arrepende.

Novamente, nesse verso 49, o derramamento do Espírito Santo, fazia parte do cumprimento das Escrituras (Jl 2.28-32, cp. At 2.16-21). Era preciso que eles fossem revestidos com o Espírito para desempenho de sua tarefa. Conforme At 1.8, somente depois do recebimento do poder do Espírito, era que eles poderiam ser testemunhas de Cristo. Isso aconteceu no dia de Pentecostes, pouco tempo depois da ascensão de Cristo (At 2.1-4).


CONCLUSÃO

O texto que ora analisamos, faz-nos chegar à conclusão da incumbência que Cristo nos outorgou. Nele encontramos uma resumida Teologia de Missão. Não por isso simples. Em primeiro lugar, tomamos ciência do fundamento da pregação do evangelho: a vida e obra do senhor Jesus Cristo. É especialmente a sua morte e ressurreição. Isto posto, é necessário para que a Igreja cumpra cabalmente o seu ministério como despenseira da multiforme graça de Deus por meio de Cristo Jesus.

Nessa Teologia missionária embrionária, destaca-se o caráter da proclamação do Evangelho. Em primeiro lugar, vimos que o conteúdo dessa pregação envolve convocar o pecador ao arrependimento para que obtenha o perdão de Deus, pois sem arrependimento, a condenação é certa. Em segundo lugar, Jesus nos revela o escopo dessa missão: a todas as nações. Israel deixa de ser o centro exclusivo, mas passa a ser o centro inclusivista, ou seja, o centro irradiador, pois Deus ainda tem um plano para Israel, a despeito de sua rejeição primeva. O Evangelho do Senhor Jesus Cristo é universal, bem como a instituição divino-humana criada a partir dele, a Igreja.

Em terceiro lugar, o testemunho apostólico é o fundamento da fé cristã. Como o próprio Lucas escreve em Atos, era necessário que o apóstolo fosse testemunha ocular da vida e obra de Cristo para que fosse testemunha da Sua ressurreição. A Igreja repousa sobre o fundamento dos apóstolos, que receberam revelação direta do Senhor e Salvador da Igreja. Por fim, Jesus nos revela que essa tarefa desafiadora e grande não pode ser realizada na força do próprio homem. É preciso o poder capacitador e orientador do Espírito Santo, que haveria de estar com os seus servos até a consumação dos séculos. Não existiria Igreja sem a obra regeneradora e santificadora do Espírito. Não há sabedoria ou oratória humanas que possam gerar um convertido. Só a ação poderosa e soberana do Espírito na vida do pecador, pode confirmar a palavra de salvação.


Lições práticas

Georg Vicedom em A Missão como obra de Deus, disse: “não cabe à Igreja decidir se ela quer fazer missão, mas ela só pode decidir se quer ser Igreja”.[17]

Gostaria de destacar pelos menos 3 aspectos da relação da igreja primitiva conosco hoje:

1. Temos de nos envolver apaixonadamente nesta causa, sem apatia ou desânimo.

2. Somos responsáveis pela veracidade do testemunho. Devemos voltar nossos olhos para a Escritura como padrão daquilo que falamos. Pregar corretamente o Evangelho, todo o desígnio de Deus.

3. Temos de ser fiéis não somente aos fatos, mas também ao significado desses fatos. Trata-se de apresentar a Cristo e sua mensagem com relevância, significação, que verdadeiramente lhe pertencem.


Robson Rosa Santana
Pastor presbiteriano





Bibliografia

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Notas


[1] Emaús é de localização incerta, mas certamente nas proximidades de Jerusalém.
[2] Termo técnico teológico alemão que expressa a situação social ou situação existencial que o texto está inserido. Veja mais em: http://www.oxfordbiblicalstudies.com/article/opr/t94/e1778 .
[3] “DE” In: FRIBERG Greek Lexicon, The BibleWorks Program, 1998.
[4] Como diz F. GODET, “Jesus aqui chama a sua [dos discípulos] atenção para o fato de tudo o que viram acontecendo recentemente (Sua humilhação, morte e ressurreição) é o cumprimento daquilo que Ele tinha previamente tão repetidamente predito a eles (cf., e.g., 9.22; 18.31-33); ou seja, que tudo que foi predito dEle, o Redentor prometido, em várias partes do Antigo Testamento, deveria ser cumprido.” Em Commentary on the Gospel of Luke. Edinburgh: The Foreign Theological, 1952. p. 641. Minha tradução.
[5] BARNES, A. Matthew – John. in Barne’s Notes on the Bible, Vol. 12, Rio (USA): AGES Software, Version 1.0 © 2000, p. 930.
[6] DAVID, Brown. Matthew-Acts. Albany, USA: AGES Software, Version 1.0 © 1997, p. 502.
[7] HENRY, Matthew. Matthew – John. Albany, USA: AGES Software, Version 1.0 © 1999, p.1858.
[8] CALVIN, John. Commentary on Matthew, Mark, Luke. vol 3. Albany, USA: AGES Software, 1997. p. 294. Minha tradução.
[9] Vide CALVIN, Commentary on Matthew, Mark, Luke. p. 294.
[10] SENIOR, D. e STUHLMUELLER, C. Os Fundamentos Bíblicos da Missão. São Paulo: Paulinas, 1987, p. 351. Minha tradução. Ver também LARKIN Jr., W. J. “Mission in Luke”. em Mission in the New Testament. Maryknoll: Orbis, 1998. p. 168.
[11] LARKIN Jr. “Mission in Luke”. p. 169. Minha tradução.
[12] DAGG, John L. Manual de Teologia. São José dos Campos: Fiel, 1989. p. 117.
[13] SPURGEN, Charles H. “Beginning at Jerusalem”. Newington, 1883. p. 3. Disponível em: http://www.spurgeon.org/sermons/1729.htm, em 10/06/02. Minha tradução.
[14] Ibid.
[15] CALVIN, Commentary on Matthew, Mark, Luke, p. 294. Minha tradução.
[16] Vide BARNES, A. Matthew – John. p. 931. Minha tradução.
[17] VICEDOM, Georg F. A Missão como Obra de Deus: introdução a uma teologia da missão. São Leopoldo: Sinodal, 1996, p.16.


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