Um dos temas teológicos que tem chamado a atenção de muitos pastores e biblistas latinoamericanos é o da espiritualidade cristã. Tem-se publicado dezenas de livros e debates nos quais a pergunta central é: o que significa ser verdadeiramente espiritual?
Em primeiro lugar, esta espiritualidade comercializa a relação com Deus. Apresenta a um Deus que necessita de presentes e sacrifícios, um Deus ingênuo ao qual se pode enganar, um Deus interessado ao qual se pode comprar.
Tristemente, esta religiosidade caracteriza muita da espiritualidade latinoamericana. Como afirma Carlos Rama:
“A religião latinoamericana é um subproduto da conquista militar espanhola dos séculos XV e XVI... de onde se subjugaram, porém não se destruíram os velhos costumes e crenças indígenas, e inclusive nem sempre faliram a de seus escravos trazidos do continente africano”.
Em segundo lugar, esta espiritualidade é repudiável aos olhos de Deus (v.13) Por que?
à A multidão dos sacrifícios não servem para nada (v.11).
à Os holocaustos de carneiros o tem enfadado (v.11)
à As ofertas rejeita-as (v.12).
à As festas, aborrece-as sua alma (v.14).
Luis Alonzo Schoekel apresenta dois paradigmas enfrentados:
Sacrifícios à não me importam
Holocaustos à estou farto
Sangue à não me agrada
Incenso à abominável
Festas à detesta
Gestos à fecha os olhos
Orações à não escuta
Sandro Gallazi assinala a diferença entre rechaço profético do período monárquico, que estavam em conflito com o culto do templo de Salomão, e a voz de apoio e estímulo dos profetas no segundo templo. O templo salomônico – diz Gallazi – serviu de apoio e legitimização ideológica do reinado. Daí a crítica profética.
Em terceiro lugar, esta espiritualidade fecha os olhos de Deus (v.15) A Deus não podemos enganar. Esconderá seus olhos quando levantamos as mãos. Não ouvirá quando se multiplicam orações.
Qual é, então, a espiritualidade que Deus exige? Qual é o culto que lhe agrada?
Deus espera uma espiritualidade que mantenha harmonia entre devoção a Deus e amor ao próximo (vv. 16-18)
O problema não é: culto formal versus culto sincero. Enquanto houver injustiça e falta de misericórdia, todo culto estará viciado. Segundo Amós, Deus disse: “Afasta de mim o estrépito dos teus cânticos, porque não ouvirei as melodias das tuas liras. Antes, corra o juízo como as águas; e a justiça, como ribeiro perene” (Am 5.23-24 ARA). Por quê?
Em primeiro lugar, a horizontalidade e a verticalidade da fé são complementares (v.17). A relação não é de simples colaboração entre a horizontalidade e a verticalidade da fé: na realidade, são uma coisa só. Gustavo Gutierrez o expressa bem:
“A espiritualidade não se limita aos aspectos chamados religiosos como a oração ou o culto. Não é algo setorial, se não total... é um estilo de vida que dá unidade e profundidade a nosso orar, pensar e atuar”.
Por isso, não é suficiente que falemos de Direitos Humanos como assessório à fé; há de ir um pouco mais além: são essenciais à fé. Não pode ser de outro modo em países como os nossos que ocupam os primeiros lugares quanto à violação dos Direitos Humanos.
Que espiritualidade estamos promovendo como igreja evangélica? Individualista-hedonista? Espiritualista, evasiva? Integral ou solidária?
Em segundo lugar, a busca do bem-estar do próximo põe em evidência a genuidade da fé. As ofertas não foram rechaçadas por Deus porque não cumpriam requisitos cerimoniais. Foram rechaçadas porque iam acompanhadas de injustiça, opressão, falta de amor, desinteresse pelas necessidades do próximo. Com efeito, o tema de toda a passagem é a relação entre culto e justiça social. Segundo o versículo 13, Deus afirma: “não posso suportar iniqüidade associada ao ajuntamento solene”. O que faltou? Buscar o juízo, fazer justiça ao órfão, amparar a viúva. No contexto se dão nove imperativos que desembocam em “Vinde”. Deus convida a vir a ele. Deus não rechaça, mas atrai, porém o caminho para chegar a ele não é “pisar os átrios”, mas fazer justiça.
Em terceiro lugar, Isaías propõe o amor que está relacionado estreitamente com os Direitos Humanos. Não condena somente os pecados de comissão, senão muito especialmente os de omissão. Condena as ações injustas, mas também a passividade frente à injustiça. Sem justiça, os sacrifícios resultam em anticulto.
No versículo 17 se passa do universal bem/mal ao genérico direito/agravado (oprimido), para terminar no especifico órfão/viúva, que são categorias sociológicas relacionadas com as classes desvalidas. Os órfãos e as viúvas têm direito, porém não podem fazer-los valer.
Estes versículos se encerram dentro de uma concepção avançada dos Direitos Humanos, como se pode notar na seguinte comparação:
Primeira geração: Direitos fundamentais (séc. XVIII).
Segunda geração: Direitos sociais e econômicos (1948), Declaração dos Direitos Humanos.
Terceira geração: Direitos coletivos e ambientais (séc. XX).
Por outro lado, estes versículos encerram-se dentro de uma concepção doméstica e personalizada dos Direitos Humanos. A violação destes não é um problema exclusivamente do Estado: é assunto de todos.
Conclusão
Seria um horror que nós evangélicos continuemos vendo o tema da espiritualidade cristã como um capítulo interessante da teologia da libertação. A situação atual da religiosidade evangélica nos exige uma reflexão madura sobre o tema. Em contraste com a espiritualidade pietista, emocionalista e pós-moderna devemos oferecer uma espiritualidade que integre fé e solidariedade social, liturgia e preocupação pelo desvalido, culto e Direitos Humanos.
O Senhor nos convida: “Ide, porém, e aprendei o que significa: Misericórdia quero e não sacrifício” (Mt 9.13).
Extraído da Revista Iglesia y Misión, Enero-Julio 1999, Numero 67/68. Tradução Robson Rosa Santana.
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