5 de outubro de 2017

Martinho Lutero e a Reforma Protestante

    Martinho Lutero nasceu em 10 de novembro de 1483 em Eisleben (Alemanha). Passou sua infância em Mansfeld, onde seu pai trabalhava como mineiro. Depois de estudar o primário em Mansfeld, fez colégio em Magdeburgo e depois foi para a escola superior em São Jorge, em Eisnach. Por ser um estudante pobre, Lutero teve de trabalhar para ganhar o seu sustento, fazendo parte do coro da igreja e até mendigando o pão. Porém, esta situação mudou quando seu pai melhorou de condição financeira e enviou-o a Erfurt para estudar leis. “Na Faculdade de filosofia e como preparação para as leis, estudou lógica, dialética e retórica, assim como física e astronomia”.[1] Em 1502 era bacharel e três anos depois mestre (licenciado). Seu pai ficou tão entusiasmado com seu êxito que deu o custoso Corpus Iuris Civilis pensando que Lutero se empenharia nos estudos de Direito. No entanto, subitamente, ele decidiu tornar-se monge e entrar para um mosteiro, apartando-se, assim, do mundo.
    Quase nada se sabe das causas dessa repentina mudança. Alguns biógrafos dizem que foi fruto de um voto feito durante uma tempestade, mas também por causa do temor das crenças católicas. Na sua concepção o monacato seria o meio mais seguro de se obter a salvação e escapar do inferno[2]. Assim, a tempestade contribuiu para que ele tomasse essa decisão.
    Lutero entrou na ordem mendicante eremita de Santo Agostinho, motivado pela vida piedosa e sábia de João Stauptiz, que então dirigia a Alemanha. Staupitz induziu Lutero a estudar Teologia, e em 1507 foi ordenado sacerdote. Dois anos depois de entrar na ordem, Staupitz enviou Lutero para ensinar em Wittenberg, e logo depois, por assuntos da ordem, enviou-o a Roma.
    A viagem de Lutero a Roma, em 1510, foi um marco importante em sua vida. A ilusão que tinha a respeito de Roma caiu por terra quando ele constatou a imoralidade e a falta de santidade da capital do papado. Ao regressar, foi nomeado prior do convento de Wittenberg e depois de doutorar-se em Teologia em 1512 iniciou sua docência naquela universidade.
    Todavia, a crise espiritual iniciada com a sua entrada no mosteiro não tinha sido resolvida. Nada do que tinha visto e estudado tinha lhe dado paz. Apesar de buscar a reconciliação com Deus, cada vez mais se sentia separado d’Ele por causa de seus pecados. Ele estava em desespero por causa dessa situação. Depois chegou a escrever: “Manter-se em pé com as próprias forças é o erro no qual eu também estive”. No entanto, seria as Escrituras que trariam a paz de espírito que tanto buscava.
    Nos próximos anos anteriores à Reforma, entre 1513 e 1516, os ensinos e pensamentos de Lutero podiam resumir-se do seguinte modo: “o homem obtém o perdão graças a livre graça de Deus. Quando o homem tem a fé nas promessas de perdão, converte-se em um novo ser; a confiança no perdão é o começo de nova vida de santificação”.[3] Nesse novo entendimento acerca do Evangelho, Lutero começou a separar-se rapidamente da teologia escolástica, e de seu fundamento, a filosofia aristotélica.
     Durante o estudo e exposição da epístola aos Romanos, Lutero chega ao ápice de sua conversão: “Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé, independentemente das obras da lei” (Rm. 3:28). Com essa compreensão, ele se agarra na infinita graça de Deus, trazendo-lhe, assim, confiança e paz.
    A questão das indulgências acelerou ainda mais as divergências de Lutero e a Igreja Católica. O papa Leão X comissionou o arcebispo Alberto de Brandeburgo para pregar as indulgências na Alemanha, com a finalidade de arrecadar dinheiro para as obras da basílica de São Pedro. Como Alberto devia aos banqueiros Függer, encarregou o dominicano Tetzel para tal incumbência. Lutero já tinha se manifestado contra a doutrina das indulgências, e nesta ocasião conseguiu que o Eleitor Frederico negasse permissão a Tetzel de entrar em seus territórios. Porém, muitos súditos compraram as cartas papais. Lutero estava convencido de que o povo estava sendo enganado ao confiar em algo tão alheio à graça de Deus como as indulgências. Por isso negou publicamente a eficácia das indulgências.
    Assim, em 31 de outubro de 1517, Martinho Lutero coloca na porta da capela do castelo de Wittenberg as 95 teses, um documento contra as indulgências. Mas, em nenhuma delas, ele ataca o papa diretamente. “Pelo contrário, a Tese 9 diz: ‘O Espírito Santo nos beneficia através do papa’”[4]. "Estas teses, escritas em latim, não tinham o propósito de criar uma comoção religiosa, como tinha sido o caso das anteriores. Depois daquela experiência, Lutero parece ter pensado que a questão que tinha sido debatida era principalmente do interesse dos teólogos, e que, portanto, suas novas teses não teriam mais impacto que aquele produzido nos círculos acadêmicos".[5] Porém, estas teses tinham material suficiente para encolerizar a Tetzel e o arcebispo Alberto da Mongúcia.
    Num piscar de olhos as teses de Lutero se difundiram por toda a Alemanha, e apesar de se publicarem refutações, estas só serviram para realçar o conteúdo bíblico e teológico das teses. Quando Leão X tomou conhecimento não deu muita importância, pensando que seria algo regional envolvendo dominicanos e agostinianos. No entanto, Prieras, conselheiro do Papa, conseguiu dele uma ordem para que Lutero se apresentasse em Roma dentro de dois meses. Lutero, por sua vez, através de Spalatino, fez saber a Frederico e ao imperador, que isto era um ataque aos direitos das universidades alemãs. O imperador Maximiliano percebeu nesta disputa algo mais que uma discussão teológica e pediu prudência à Santa Sé, conseguindo do papa a revogação da convocação. O assunto passa às mãos de Cajetano, que exige de Lutero uma retratação total. Mas sua falta de sabedoria endureceu ainda mais as posturas.
    Leão X enviou um legado mais político e sagaz, Militz. As conversações chegaram a tal ponto que quase se chega a uma reconciliação, se não fossem as intransigências dos dominicanos. Lutero não queria uma cisão da igreja. Na verdade, ele era contra o rompimento da Igreja Romana. No entanto, sua posição muda diante dos acontecimentos.
    A celeuma crescia. O legado achava que isto havia se tornado num movimento nacional contra Roma. Isto pareceu ficar claro quando, em julho de 1519, Lutero e João Eck se enfrentaram numa grande controvérsia. Após esta, Lutero se convencia do abismo que separava a Bíblia da teologia escolástica. Alguns humanistas, como Filipe Melanchton, o povo e muitos nobres davam provas de apoio a Lutero. "Em junho de 1520, Leão X lançou a bula 'Exsurge Domine', que resultou eventualmente na excomunhão de Lutero. Em resposta, Lutero prontamente queimou em público a bula de Leão”, [6] para espanto de toda Alemanha.
    Neste mesmo ano, 1520, Lutero escreve três obras importantes: A Liberdade do Homem Cristão, O Cativeiro Babilônico da Igreja e A Nobreza Cristã da Nação Alemã. As duas primeiras atacavam doutrinas da Igreja, a última, convocava seu povo à unidade contra Roma. Alguns eruditos ficaram contra ele, um dos principais foi Erasmo de Roterdã. Este escreveu um livro defendendo o livre arbítrio, Diatriba de Libero Arbitrio, contestado energicamente por Lutero na obra De Servo Arbitrio[7], na qual são explicados os efeitos do pecado no homem.
     Após a morte do imperador Maximiliano, assume o poder seu neto Carlos V, cujo império a Alemanha fazia parte. Em 1521, Carlos V convocou uma Dieta em Worms, e Lutero também foi convocado. Ele compareceu acompanhado por nobres, teólogos, soldados e campesinos. Da parte do papa foram enviados os legados Marino Caraccioli e Jerônimo Aleandro, no intuito de que Lutero fosse entregue a justiça.
    Nesta Dieta foi exigido que Lutero se retratasse do que escreveu. Como não lhe foi dado o direito de se defender, ele pede tempo para meditar e lhe dão mais vinte e quatro horas. A segunda sessão foi dirigida por João Eck, que expôs novamente as acusações, sem lugar para debates. Lutero havia de se retratar ou sofrer as conseqüências. Quando chegou a sua vez de falar, foi brilhante. O que disse tinha o apoio dos doutores e santos, das Escrituras Sagradas, bem como das advertências de papas acerca do mau uso das indulgências. Eck queria uma retratação geral, e pedia que Lutero desse uma resposta direta e definitiva. Sua resposta foi: "é impossível retratar-me, a não ser que me provem que estou laborando um erro, pelo testemunho das Escrituras ou por uma razão evidente; não posso confiar nas decisões dos concílios e dos papas, pois é evidente que eles não somente têm errado, mas se tem contradito uns aos outro. Minha consciência está alicerçada na Palavra de Deus, e não é seguro nem honesto agir-se contra a consciência de alguém. Assim Deus me ajude. Amém".[8]
    Em meio a um grande alvoroço, em que os espanhóis pediam a fogueira e os alemães o trataram como um cavaleiro vitorioso de um torneio, Lutero saiu da audiência. Restava-lhe somente esperar a sentença do imperador. Sob pressão, o imperador proclamou o Édito de Worms, em que se ordenava a queima de seus livros, assim como a difusão de sua doutrina e ameaça de morte aos seus colaboradores. Os legados e o papa ficaram satisfeitos com o édito. Os príncipes alemães, por sua vez, temendo uma revolução popular, foram remissos e indispostos a executar as ordens do édito. Muitos deles eram simpáticos a sua atitude.
    Lutero, entretanto, escrevia a todo vapor em Wartburg. De lá saíram novos tratados, recompilação de seus sermões e início da tradução da Bíblia para o alemão. "Em 1522, Lutero voltou para Wittenberg para tratar das desordens que tinham irrompido na sua ausência".[9] Lideradas por alguns de seus colaboradores, tais como Carlstadt e o iluminista Tomás Muntzer. A ordem voltou à cidade e os líderes expulsos da cidade.
    O número de discípulos se multiplicava. Das várias ordens, monges e monjas deixavam os mosteiros para viver uma vida cristã mais normal. Porém, nesse contexto de aceitação dos ensinamentos do reformador, surgiram três crises graves. A primeira foi a revolta da pequena nobreza do sul da Alemanha. A segunda foi o ressurgimento de Carlstadt e Muntzer, líderes do movimento que depois recebeu o nome de anabatistas. E a terceira foi A Guerra dos Camponeses[10].
    Apesar desses contratempos e dos consequentes desvios doutrinários, a reforma se fortalecia. Carlos V abandonou a Alemanha de 1522 a 1530. Suas lutas lhe impediram de dedicar-se à causa luterana. O norte da Alemanha já havia abraçado a reforma, e de lá se estendeu para Danzig.
    Em meados de 1525, Lutero contraiu matrimônio com Catarina Van Bora, uma ex-freira. Em fins do mesmo ano, a cisão entre católicos e luteranos se aferrava e cada grupo defendia-se mutuamente. Em 1526 aconteceu a Dieta de Spira, na qual Fernando da Áustria ordenou a aplicação do Édito de Worms. Mas como a maioria dos príncipes era luterana, ficou resolvido que cada estado se responsabilizaria diante de Deus e da religião de seu povo. As igrejas reformadas se organizaram rapidamente e o culto evangélico foi estabelecido oficialmente em muitas cidades.
    "Uma segunda Dieta, realizada em Spira, em 1529, revogou a decisão da Dieta anterior e declarou que a fé católica romana era por lei a única fé. Os príncipes luteranos leram um 'Protesto'. A partir daí foram chamados de 'Protestantes' por seus opositores".[11]
    Durante muitos anos os luteranos tentaram melhorar suas relações com Roma. Quando Carlos V voltou a Alemanha, em 1530, tentou resolver essa questão religiosa, que estava convulsionando o império. Assim, nesse mesmo ano, na Dieta de Augsburg, a questão foi debatida. "Numa declaração de princípios, os luteranos apresentaram a famosa Confissão de Augsburg. Melanchton, que se tornara um líder, apenas superado por Lutero, foi o principal autor dessa declaração".[12] Melanchton a redigiu em termos suaves e conciliadores, mas não houve entendimento. Então, o imperador ordenou a aplicação do Édito de Worms, a restauração da autoridade papal e a restituição dos bens eclesiásticos.
    Essas medidas foram uma declaração de guerra. Os príncipes luteranos criaram a Liga de Esmalcalda. A ela se uniram cidades do sul da Alemanha e da Suíça. Porém, não era dessa vez que a reforma seria suplantada. Em 1546, ano em que realmente a guerra começou, a situação ficava mais tensa. Do lado protestante veio à tona a bigamia de Filipe de Hesse, ao casar novamente, por causa da esterilidade da esposa. Do lado católico havia planos para uma Contra-Reforma, que culminou no Concílio de Trento (1543-1563).
    Por causa de uma viajem a Mansfeld no rigoroso inverno de 1546, Lutero ficou muito doente e morreu dias depois. Poucos meses após sua morte sobreveio a guerra. O Eleitor Frederico foi derrotado pelo imperador em Mühlberg, e os espanhóis ocuparam cidades protestantes. Carlos V, por sua vez, tentou impor um credo misto, que não satisfazia a ninguém. A princípio a vitória do imperador contra os protestantes era visível em toda parte. "Pouco tempo depois, porém, Maurício da Saxônia, expulsou-o da Alemanha. Entristecido por isto, e por outros fracassos, Carlos entregou a direção do Império às mãos do seu irmão Fernando. Sob o governo deste, foi feita a Paz de Augsburg na Dieta de 1555, a qual determinava que cada príncipe decidisse qual seria a religião do seu próprio território".[13] Essa paz legalizava o protestantismo na Alemanha, e eram assegurados os frutos da grande cisão com Roma. Somente a Confissão de Augsburg era tolerada, para outros grupos protestantes não havia liberdade. Todavia, a Paz de Augsburg foi o primeiro passo para uma completa liberdade religiosa.
    A influência de Lutero foi sentida em toda a Europa. Sua cisão com Roma espalhou-se rapidamente. Seus escritos tiveram grande aceitação. "Foi assim que seu movimento se fortificou na Boêmia, Hungria, Polônia. Inglaterra, Escócia, França, Países Baixos, Escandinávia, e mesmo na Espanha e Itália. Em alguns desses países, o movimento de reforma religiosa tinha tido início antes mesmo que Lutero surgisse como reformador".[14] Nos países escandinavos, Dinamarca, Noruega e Suécia, a Reforma foi um movimento exclusivamente luterano.

Pr. Robson Santana
IGREJA PRESBITERIANA DO BRASIL

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[1]Ricardo CERNI, Historia del Protestantismo, p.39 (tradução minha).
[2] Idem, p. 39.
[3] Idem , p. 40, 41.
[4] Idem p.42
[5] Justo L. González, A Era dos Reformadores, p. 54.
[6] Earle E. Cairns, O Cristianismo através dos Séculos: uma História da Igreja Cristã, p. 237.
[7] Temos uma obra condensada deste livro, Nascido Escravo, editora Fiel.
[8] Citação extraída do livro História da Igreja Cristã, de Robert Hasting Nichols, p. 166.
[9] R. W. Heinze, Martinho Lutero, in Walter A. Elwell, ed., Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, p. 457, vol. ii.
[10] Cerni, op. cit., pp. 48, 49.
[11] Cairns, op. cit., p. 239.
[12] Robert Hasting Nichols, História da Igreja Cristã, p. 169.
[13] idem, p. 171.
[14] Idem, p.171.